A arte e a alma

0
Criado em 06 de Setembro de 2012 Cultura
A- A A+

 

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

 

  Para o início das atividades como crítico de arte da revista Mais, cabe fazer uma indagação inicial: por que a arte é tão importante para nós?

 
  Todos temos nossas músicas de preferência, filmes favoritos, quadros que nos sensibilizam, predileção por esse ou aquele livro ou poema, mas, se tudo isso está dado, por que temos ainda que falar em arte?
 
   Vamos do começo: a arte é uma linguagem que estabelece a comunicação entre o artista e seu público. Não uma linguagem que se faz exclusivamente através de palavras, mas que se estabelece por meio de sinais – de todos os tipos –, e é por isso, por exemplo, que podemos sentir e gostar de canções feitas em diversas línguas.
 
   A posse de carros e o uso de joias, perfumes ou roupas podem comunicar determinada situação social, assim como o não-uso pode transmitir simplicidade, despojamento e humildade. Existem, portanto, estratégias de linguagem, formadas até inconscientemente.
 
   A comunicação pode apertar vínculos, gerar controvérsias, equívocos de interpretação, conflitos de culturas inteiras, de países e religiões. Assim, a imagem de um Deus, que, para algumasculturas, é uma homenagem, para outras, pode significar desrespeito e, ainda para outras, profanação, a ser punida com a pena de morte.
 
  Podemos ser propositadamente ofensivos e usar a comunicação por palavras ou sinais para ser provocativos, semear conflitos e causar escândalos. 
 
  E o que diremos, então, dos nossos sonhos, eróticos, agradáveis, ou de pesadelos horríveis? Não serão também um tipo de linguagem com que cada um de nós dialoga consigo próprio, emitindo sinais?
 
  O artista quer, portanto, se comunicar, mas, como todos nós, ele não tem apenas palavras adocicadas a dizer. A poesia de Augusto dos Anjos, as diversas personalidades nos poemas de Fernando Pessoa, a sabedoria rural dos versos de Cora Coralina desafiam a nossa sensibilidade a tomar rumos diferentes. Os quadros tormentosos de Hieronymus Bosh, Caravaggio, Goya e Lucian Freud. Obras de valor cultural e econômico imenso, mas que, muitas vezes, são o grito silencioso de alguém que não quer dizer para alguém que não quer ouvir.
 
  Nós, seres humanos, em toda parte, fazemos apologia à paz, mas vivemos todo o tempo em guerra – conosco, inclusive – e, acreditem, nos matamos. Vivemos na natureza, mas a destruímos todos os dias.
 
  As religiões pregam o amor eterno e incondicional de Deus, a bondade universal, mas batalham por hegemonia, dividem-se e subdividem-se, vivem da demonização recíproca e da mais completa intolerância a divergências. Católicos contra protestantes, judeus contra mulçumanos, budistas contra taoistas, hinduístas contra mulçumanos vivem em guerra em diversos países.
 
  Conhecer a arte e pensar sobre ela criticamente são maneiras, das mais honestas, de nos conhecermos e nos entendermos em relação aos outros. Não há hipocrisia na arte. Aqui estão os tormentos de nossas almas, suas paixões, o erotismo, a ternura, nossas incompletudes, nosso ódio e nosso amor também.
 
  Mergulhar no mundo artístico é ainda a oportunidade, que aproveitamos tão pouco, de perceber o outro, não apenas no nível do que nos traz prazer, mas também naquilo que nos angustia, repugna ou faz sofrer. E isso nos faz melhores, porque todo o nosso universo se chama “outro”, e a arte é outro universo.
 
*Estudioso da psicanálise e crítico de arte e cultura



AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.