A magia da tradição

Cultura

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Criado em 14 de Setembro de 2015 Cultura

Fotos: Luciano Reis

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A receita tipicamente mineira, que conquistou até os paladares mais exigentes, faz parte da identidade cultural do Estado e ajuda a contar um pouco da história do grandioso estádio de Minas, que comemora 50 anos
 
Lisley Alvarenga
 

DIA 5 DE SETEMBRO DE 1965. O Gigante mineiro abria seus portões para primeira vez para receber o primeiro jogo de sua história: River Plate, da Argentina, ver­sus seleção mineira. A arena, é verdade, não estava lotada, mas o boato que se espalhou na capital na época, dias antes da inauguração, de que a construção foi malfeita não conseguiu tirar o brilho daquele que se tornou uma paixão dos mi­neiros. Seja atleticano, seja cruzeirense, seja americano, não há quem não sinta emoções inexplicáveis quando entra em contato com um dos maiores palcos do futebol nacional e internacional, o Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mi­neirão. E a experiência de ir a esse esplendoroso estádio vai além, ganhando aro­mas e sabores inesquecíveis, sobretudo para quem desfruta do famoso tropeiro.

Marco na história da culinária mineira, o tradicional prato, que era servido no estádio antes da reforma de 2010, mudou. Muitos torcedores alegam que ele perdeu a magia e o sabor insuperáveis. Mas, polêmicas à parte, quem nunca ouviu falar do tropeirão? Era nesse bar, localizado na entrada do portão 13, que se vendia a mais popular iguaria de todo o estádio, em um pratinho de plástico, com arroz, couve, torresmo, ovo frito, pernil de porco e, é claro, o feijão tropeiro. Não se pode esquecer a cereja do bolo: o molho de tomate, que dava um toque final espetacu­lar ao prato. “Minha tia Lola, irmã da minha mãe (Euvina de Oliveira, de 72 anos), foi convidada para atuar no estádio logo após a inauguração. Ela cuidava dos bares 11, 12 e 13, e, como o 13 não tinha muita visibilida­de, por causa da localização, ela apostou no tropeiro para aumentar o movimento. O su­cesso foi tanto que ela não conseguiu mais atender à demanda do estádio, e os outros bares passaram a vender o prato também. Quando ela deixou o bar, repassou para minha mãe”, conta Eliane Assis, 48, que fi­cava no caixa enquanto a mãe comandava a cozinha.

O segredo de tantas glórias e admirado­res do prato, durante as décadas em que ele foi comercializado na arena, é herança de fa­mília. Dona Vina, como era conhecida pelos torcedores, manteve a receita feita pela irmã e esteve à frente do extinto bar por 38 anos. “Para se ter uma ideia, a vasilha para dosar a farinha tem 50 anos. A receita do molho e do tempero da carne é segredo de estado. As pessoas que sabem fazer são apenas mi­nha tia, minha mãe, eu, minhas duas irmãs e uma cozinheira nossa”, brinca Eliane.

O carinho e a dedicação dispensados à famosa iguaria surtiram efeito: 4.300 tro­peiros servidos no mesmo dia, ocasião em que havia cerca de 90 mil torcedores no es­tádio, em um jogo da Recopa, é o recorde de vendas do tropeiro. “As melhores lem­branças que tenho na vida estão no Minei­rão. Aos 10 anos, comecei a ajudar no bar. Minha irmã e eu fomos criadas debaixo do balcão do Mineirão. Conheci meu marido lá, e meus filhos quase nasceram dentro do estádio. O ambiente era peculiar e familiar. Fizemos grandes amigos. Por isso, fazer parte da história do estádio é um orgulho. Lembro que as pessoas ficavam horas na fila, esperando o prato, e não reclamavam. Se você bobeasse, tinha um bife roubado. Muitas pessoas compravam marmitex e le­vavam para casa. Tinha gente que chegava com toda a família para almoçar, fora as quentinhas que vendíamos para a polícia e os repórteres. Era mágico. A gente olhava todos nos olhos, dava atenção. Hoje, as coisas lá são muito diferentes”, constata.

MUDANÇA DE ENDEREÇO

O saudosismo de Eliane se justifica. Logo após a reforma do estádio, a família resolveu criar asas e não renovou o contrato com a administração. Assim, o Tropeiro do 13 mudou de endereço, funcionando hoje no bairro Planalto, com status de restaurante. “Como os bares teriam que seguir um estilo tropeiro gourmet para atender a uma exigência da nova administração do local, preferi­mos continuar fazendo o tradicional prato fora do Mineirão”, explica a empresária. “Confesso que, quando saí, senti muito. Nos primeiros meses, perdi oito quilos. Fiquei apaixonada”, completa.

Quem é frequentador do estádio sente falta dos tempos de glória e também do molho de tomate irrigando a couve e do “zoiudo”, como é apelidado o ovo frito por cima do tropeiro. “Quando fui ao estádio pela primeira vez, em 1989, foi paixão à primeira vista. Achei o tropeiro uma delícia, mas muito diferente do prato que é vendido lá hoje”, conta a cruzeirense Janete Reis, 58 anos, para quem a tradição do tropeiro do Mi­neirão acabou.

No restaurante do Planalto, é óbvio, não há torcedores aos gritos, pratos, talheres e feijão voando sobre as cabeças a cada gol, mas Eliane tenta compensar o alvoroço das emoções futebo­lísticas mantendo a qualidade do prato. “Confes­so que não esperava que o torcedor do Mineirão nos buscasse. Foi uma grata surpresa. Todos os dias, vendemos o tropeiro, que continua sendo nosso carro-chefe, mas incrementamos o cardá­pio com pratos diferentes”, informa Eliane.

A boa-nova vem se espalhando entre os minei­ros, que, diante da nostalgia do antigo tropeirão, têm agora destino certo após os jogos. “O tropei­ro faz parte da história do estádio, e a mudança para um preparo mais industrializado fez com que a cultura do local perdesse um pouco de sua identidade. A reforma trouxe melhorias, mas, nes­se quesito, houve uma perda. Por isso, quando tenho vontade de degustar o prato, vou ao res­taurante da Eliane”, conta o atleticano Christia­no Rocha, 34. Para Bruno Carvalho, 32, também torcedor rubro-negro, apesar de o tropeiro do Mineirão ter ficado mais saudável, ele perdeu sua essência, a de ser uma comida tipicamente minei­ra. “O sabor não é o mesmo. Quando vou lá, só se estou com muita fome é que como dentro do estádio”, salienta.

NO ESTILO GOURMET

A venda do feijão tropeiro no Minei­rão, atualmente, passa por um organiza­do e padronizado processo, sob respon­sabilidade da Gourmet Sports, gestora das concessões e da hospitalidade do estádio. No total, são 58 bares, sendo 16 servindo o tropeiro, e quatro gestores diferentes de bares de tropeiro. “Três deles atuam no estádio há mais de 20 anos. O outro gestor era ambulante e trabalhou no entorno do estádio com sua família. Na reforma, os ambulantes foram convidados a participar da for­mação dos serviços de alimentação de dentro do estádio. Quando houve uma oportunidade de abertura de bares, devido à demanda, o mesmo mostrou interesse e veio compor o quadro”, ex­plica o nutricionista do Mineirão, Gus­tavo Cunha.

Segundo o especialista, com exce­ção do ovo, temporariamente retira­do do prato devido ao risco sanitário no fornecimento do produto, a recei­ta do tropeiro foi mantida. “Fomos orientados a utilizar o ovo pasteuriza­do, porém ele descaracterizaria o pra­to. Estamos analisando junto ao órgão sanitário o melhor caminho para a reinserção do item”, salienta Cunha.

Mesmo apesar das mudanças, o Mi­nas Arena, administrador do Gigante, garante que o novo prato está sendo bem-aceito pelos frequentadores. “Em partidas com grande público, próximo a 40, 50 mil torcedores, são consumi­das, em média, 14 mil unidades do tropeiro. Esse número varia bastante, dependendo do horário da partida. Percebemos que, em jogos noturnos e no domingo, às 16h, o consumo é ainda maior”. “A história do tropeiro e do Mineirão se confundem. Difícil imaginar o estádio sem o tradicional prato da culinária mineira. Até mesmo na Copa do Mundo, a Fifa entendeu que seria importante a comercialização desse ‘cartão de visitas’ do Mineirão para turistas e torcedores”, pondera a assessoria do Minas Arena.

CINCO DÉCADAS EM GRANDE ESTILO
 
Para comemorar o aniversário de 50 anos em grande estilo no dia 5 de outubro, o Mineirão ganhou selo, carimbo e cartão-postal. O selo, que compõe o conjunto filaté­lico, contém a fotografia do “novo” Mineirão visto de cima. O cartão­-postal reproduz a mesma imagem. Em ambos, há os dizeres referentes à data: “Cinquentenário do Estádio Governador Magalhães Pinto - Mi­neirão”. Já o carimbo comemora­tivo é composto por grafismo em alto contraste, que reproduz as formas do Mineirão também visto de cima, com as características tí­picas do projeto arquitetônico do estádio. A construção faz parte do conjunto arquitetônico da Pampu­lha, projetado por Oscar Niemeyer. O carimbo fará parte do acervo do Museu Nacional dos Correios, em Brasília, para servir como fonte de pesquisa e registro.





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