Deus, mulher!

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

0
Criado em 24 de Março de 2014 Cultura

Vênus de Willendorf, do Paleolítico Superior, estimada em ter sido produzida entre 24.000 e 22.000 a.C.

A- A A+
Neste mundo em que a religião se enraíza na política e se entrelaça em seu tronco, brandindo capítulos e versículos como autênticas palavras de ordem, é necessário voltar no tempo, para buscar quando e por quais razões o Sagrado foi masculinizado, abrindo portas para a discriminação de gênero e a homofobia.
 
Como início de reflexão, é conveniente assentar que, como divindade transcendente, sem corpo físico, eterna, imortal, onipresente, onisciente, etc., etc., etc., Deus não poderia ter gênero, cor ou necessidades terrenas, donde, por uma questão filosófica, bem básica até, a imagem de um “Deus pai” é falsa. O Deus, não terreno, cósmico, não poderia ser mãe nem pai, simplesmente levando em conta sua distinção da condição humana.
 
Na história mais antiga, antes do cristianismo, foi cultuada a imagem de diversas Deusas, sendo bastante seguro afirmar que as mais antigas imagens do sagrado, na pré-história (períodos Neolítico e Paleolítico), dizem respeito a Deusas, vinculadas à fertilidade, à fecundidade e, depois, à abundância das colheitas.
 
Queima de uma bruxa na fogueira na localidade de Willisau, Suíça, em 1447/Foto: reprodução
 
Ora, é fácil supor que, quando as comunidades eram nômades, andando em busca de melhores campos para a caça e a colheita, era muito difícil afirmar a paternidade deste ou daquele membro da tribo. A maternidade era simples, segura e fundamental (e, por isso, sagrada), mas a paternidade não.
 
Com o tempo, as tribos se assentaram, passaram a defender seus territórios. O surgimento de técnicas e ferramentas rudimentares começou a gerar excesso de produção, e aqueles meios de subsistência que, antes, eram comuns a todos foram “privatizados”. Surgiu então o conceito de “meu”. Minha casa, minha mulher, meu filho... Quanto mais avançou a civilização, mais arraigado se tornou o conceito de propriedade do Pai. As Deusas, outrora influentes, foram relegadas a um plano inferior, pelas culturas religiosas patriarcais, notadamente pelo cristianismo e pelo islamismo. Já não eram Deusas, no máximo, santas.
 
Mulheres que exerciam formas primitivas de medicina, que reivindicavam estatuto de igualdade com os seus maridos, a propriedade do próprio corpo ou que manifestavam sintomas de sofrimento mental eram queimadas como bruxas por cristãos munidos de Bíblias e ladainhas. E, ainda hoje, são mortas por apedrejamento em culturas islâmicas. Note: o povo festejava e festeja essas mortes!
 
Lilith de John Collier, pintada em 1892
 
Poucas pessoas conhecem a versão da Cabala, da Bíblia, também descrita no alfabeto de Ben-Sira, segundo a qual a primeira mulher de Adão seria Lilith, e não Eva. Lilith teria sido feita do mesmo barro que Adão e, assim, sentia-se igual a ele. Lilith recusava submeter-se aos caprichos sexuais de Adão, por achar que as coisas não tinham de ser feitas conforme ele queria, e, por essa razão, teria sido transformada por “Deus Pai” na serpente que corrompeu o casal do Paraíso.
 
Notem o trecho da literatura antiga:
“Depois que Deus criou Adão, que estava sozinho, Ele disse: 'Não é bom que o homem esteja só'” (Gênesis 2:18). Ele então criou a mulher para Adão, da terra, como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a de Lilith. Adão e Lilith imediatamente começaram a brigar. Lilith disse: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti?". Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.” Quando reclamou de sua condição a Deus, ele retrucou: “Eu não vou me deitar abaixo de você, apenas por cima. Pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou um ser superior.” Lilith respondeu: “Nós somos iguais um ao outro, considerando que ambos fomos criados a partir da terra.” Mas eles não deram ouvidos um ao outro. Quando Lilith percebeu isso, ela pronunciou o Nome Inefável e voou para o ar. Adão permaneceu em oração diante do seu Criador: “Soberano do universo! A mulher que você me deu fugiu!”. Ao mesmo tempo, Deus enviou três anjos para trazê-la de volta. Os três anjos insistiram que ela voltasse e ameaçaram afogá-la, porém, ela se recusou a voltar, sendo assim condenada por Deus a perder cem filhos por dia. Desde então, para proteger os recém-nascidos da influência de Lilith, seria necessário colocar amuletos com o nome dos três anjos (Snvi, Snsvi, and Smnglof ), lembrando-a de sua promessa. Eva teria então sido criada a partir de Adão. Outra interpretação diz que ela (Lilith) juntou-se aos anjos caídos quando se casou com Samael, que tentou Eva, ao passo que Lilith tentou a Adão, fazendo-os cometer adultério. Desde então, o homem foi expulso do Paraíso e Lilith tentaria destruir a humanidade, filhos do adultério de Adão com Eva, pois mesmo abandonando seu marido ela não aceitava sua segunda mulher. Ela então passou a perseguir os homens, principalmente os adúlteros, crianças e recém-casados, para se vingar.” Extraído de: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lilith. Acesso em: 21 de fevereiro de 2014.
 
Clássicos da pintura sobre o tema Lilith são muito conhecidos, muitos livros foram escritos sobre a matéria, simbólica na luta sobre as questões de gênero e opção sexual. Mas Lilith é apenas um símbolo, porque a história é farta de exemplos de violências e massacres reais a mulheres que reivindicavam o estatuto social da igualdade. Não nos esqueçamos que o Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, noticia massacre de mulheres que morreram carbonizadas em uma fábrica de tecidos em Nova York, ao reivindicarem melhores condições de trabalho.
 
Mas como estaria a história de nossas religiões se Deus, todo-poderoso, fosse mulher? O que mudaria em nossa cultura diante da personificação de uma “Deusa Mãe” e da maternagem de nossas relações sociais? A questão é mais desafiadora do que aparenta, perpassa a discussão das sociedades matriarcais, nossas relações com Édipo, nossas mães, mulheres e, com certeza, mulheres que existem dentro de nós, sem as quais seríamos apenas íncubos de tragédias morais, psicológicas, culturais e históricas. A violência do homem contra a mulher, psíquica, moral, cultural ou histórica, é, certamente, a mãe da trágica aventura humana.
 
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].

 




AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.