“Eu com asperger?”

No conhecimento da maioria das pessoas, transtornos do espectro autista são descobertos sempre na infância. Para a jornalista e relações-públicas Selma Sueli Silva, de 54 anos, o diagnóstico da síndrome de asperger veio apenas em 2016.

Criado em 20 de Setembro de 2018 Entrevista
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Quando você descobriu ter asperger e como foi?

Tive meu diagnóstico em novembro de 2016, dado pela doutora Giovana Mol, psiquiatra, da Clínica Allerevita. Eu já fazia terapia desde 2001, por causa de ansiedade, algumas manias e outros tantos medos, mas, principalmente, para aprender a educar meu filho. Fazia tudo que havia aprendido e estudado, e nada dava certo. Victor era chamado de mimado por ser filho único, sem limites e com nenhuma tolerância à frustração. Eu sabia que isso não era verdade, que ele era um menino de essência doce, alegre e muito inteligente. O diagnóstico dele veio em 2008, aos 11 anos. A partir daí, passei a estudar profundamente o assunto. Percebi muitas semelhanças entre mim e Victor, o que até me ajudou a entendê-lo melhor. Mas era uma jornada de muitos desafios. Comecei a me sentir muito esticada também. Em vários momentos, pensava estar tendo crise nervosa. Falei de minha suspeita sobre o autismo em mim a meu psicólogo, e ele me disse que era normal esse espelhamento. Segui em frente, pois acompanhar filho autista é um grande trabalho. Perto dos 19 anos, Victor confessou que suspeitava disso também. Falou com o psicólogo dele, que considerou a questão, e o médico nos indicou a doutora Giovana. Depois de várias sessões comigo, minha família e muitos testes próprios para o caso, veio o diagnóstico.

Como você reagiu?

Mesmo com minha suspeita, entrei em choque. Como assim? Eu com asperger? Então minha vida começou a passar em minha cabeça feito um filme. Porque ninguém vira autista. O autismo sempre esteve lá. Vi isso nos casos relembrados com minha mãe e tios, minhas próprias doces e doloridas lembranças. Mas, sobretudo, resgatei muita coisa em meus diários (sim, eu tenho diário desde os 11 anos). Foi muito sofrimento, principalmente na adolescência. Eu me vi criando estratégias para não me sentir tão inadequada, para dar conta do contato na escola, na vida. Minha mãe foi fundamental nesse processo. Ela sempre foi de vanguarda, teve três filhas, sendo duas mais ‘esquisitas’. Transformei tudo isso num livro, que lancei em 2017: “Minha Vida de Trás para Frente” (Manduruvá Edições Especiais).

Explique, por favor, o que é o asperger.

Lá atrás, fui apresentada à síndrome de asperger como a prima rica do autismo. Com características semelhantes, mas sem atraso cognitivo. A síndrome é como o autismo, um transtorno global do desenvolvimento, e está presente em cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo. No fim dos anos 1980, uma a cada 500 crianças era diagnosticada com autismo. Hoje, a taxa é de uma a cada 59. O significativo aumento chamou atenção até da Organização das Nações Unidas (ONU), que classificou o distúrbio como uma questão de saúde pública mundial. Em 2013, o termo autismo foi substituído por Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), que apresenta todas as nuances do autismo (severo, moderado e leve). Com o tempo, vivendo o autismo e estudando sobre ele, eu e meu filho conhecemos o conceito da neurodiversidade.  O autista possui um cérebro neurodivergente. Esse conceito foi desenvolvido pela socióloga australiana Judy Singer nos anos 90 e, recentemente, ganhou repercussão através de ativistas como Amy Sequenzia, Ido Kedar e Nick Walker (os dois primeiros, autistas não verbais). Aqui, no Brasil, ainda vem engatinhando com o ativismo de autistas adultos, como eu e meu filho. A neurodiversidade defende a ideia de que o autismo não é uma doença a ser curada e também a criação de uma cultura de orgulho da identidade autista, não como forma de ‘glamourizar’ a condição, mas para prevenir o suicídio entre autistas. Dados apontam que autistas vivem em média 16 anos menos que a população em geral, sendo o suicídio a principal causa da morte, ao lado da epilepsia.

Quais foram as principais dificuldades que você enfrentou ao longo da vida por ter asperger, mesmo sem saber? E como você superou todas elas?

Recebi muitos rótulos: ‘nervosinha’, ‘sem esportiva’, ‘sensível demais’. Isso me fazia questionar meu jeito. Tinha um profundo sentimento de inadequação e, para dar conta da escola (que foi um período muito difícil), criei a Selma, e a Sueli ficava em casa. Esses dois mundos não podiam se misturar. Muitas vezes, eu me senti burra, pois não entendia coisas que para os outros eram óbvias. Tive muito atrito com minha irmã caçula, que era bem diferente de mim, tipo “a popular”. Resolvi fazer comunicação para entender um pouco mais como me relacionar melhor. Percebi que havia muitas técnicas que amenizavam meu sentimento de inadequação. Por exemplo, ninguém resiste a uma pessoa bem-humorada e amorosa. E quem resiste, normalmente, não vale a pena. Passei minha vida observando ‘gente’ e escrevendo – meu hiperfoco depois da leitura de toda a coleção de Ágatha Christie. Sempre me senti feia e insegura, mas aprendi que, se a gente não deixar o outro perceber esse nosso sentimento, fica mais fácil.

Diante dessas dificuldades, como ocorre o relacionamento interpessoal?

A parte mais complicada foi ser muito ingênua e acreditar nas pessoas. Não conseguia ver motivo para alguém mentir. Isso me levou a alguns relacionamentos abusivos. Depois do diagnóstico, rompi uma relação de nove anos com um namorado que tive após minha separação do pai do Victor. Só após o diagnóstico é que entendi que essa relação não era como eu acreditava ser. Pensava: sei que sou madura, experiente. Por que ainda caio nas garras de amizades e relacionamentos hipócritas? Agora estou bem mais atenta, pois sei que essa é minha limitação. Estou sozinha desde então, porque, como o autista não dá conta de pessoas mentirosas, os neurotípicos parecem não dar conta da sinceridade do autista também. Ainda hoje, muitas pessoas estranham que eu, meu ex-marido, meu filho e minha mãe nos tornamos uma grande família. Eu é que não entendo como as pessoas conseguem amar, compartilhar uma vida com o outro e, depois, passarem a o odiar. Já na relação com meu filho, me apontam que somos parceiros e amigos demais. Tínhamos de ser muito mais mãe e filho. Não entendo. Eu vi esse cara crescendo, confiei e investi no potencial dele. Ensinei e aprendi muito. Como não querer ser parceira e amiga dele? Uma coisa não exclui a outra. A regra é: somos amigos e parceiros, mas sempre serei a mãe dele e devo ser respeitada como tal, assim como respeito profundamente meu filho. Minha família hoje me compreende mais, e passamos a viver com muito mais harmonia. Amo minha mãe e minhas irmãs.

Muitas pessoas entendem que os transtornos de espectro autista são descobertos apenas na infância...

Está vendo? O cérebro autista é lógico. Esse pensamento não faz sentido. Observe: aqui, no Brasil, a síndrome de asperger entrou para o CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) somente em 1994. A partir daí é que a comunidade médica daqui começou a se inteirar disso para conseguir diagnosticar. Tudo muito lentamente. Tenho outros casos na família que não foram diagnosticados, e somente consegui o diagnóstico do Victor quando ele tinha 11 anos.

Mesmo eu dando todos os indicativos para os médicos que o acompanhavam, eles falavam: “calma, você está procurando chifres em cabeça de cavalo”. Aliás, só entendi essa expressão depois que minha mãe me explicou. Eu aprendi muita coisa, no passo a passo, diferentemente dos neurotípicos, que aprendem por instinto até. Pela minha experiência com meu filho e comigo, a mulher tem mais condições de responder ao que a sociedade espera dela, fala mais palavras que os homens, essas coisas. Daí, no meu caso, que construí uma carreira sólida, casei-me: ‘pra que procurar o diagnóstico’? Certo? Não. Erradíssimo. A sociedade dita regras, seleciona, exclui e não se importa se o adulto autista está sofrendo ou não, a não ser que ele represente algum desconforto para as pessoas.

Você tem um canal no YouYube, o ‘Mundo Asperger’, onde posta conteúdo sobre o transtorno, juntamente com seu filho. Por que decidiram entrar nessa plataforma, e qual retorno vocês obtêm dos vídeos?

Descobrir o autismo acaba afastando as pessoas da gente – família, conhecidos. Uns se afastam por maldade mesmo. Mas a maioria, não. As pessoas se afastam porque não sabem lidar, têm medo de piorar, de ser invasivas. Houve um tempo em que eu e meu filho nos sentimos muito sozinhos. Até as pessoas mais próximas, se não procuram conhecer, podem fazer e falar coisas que nos machucam. Então, resolvemos compartilhar vivências para que ninguém se sentisse assim, sozinho. Além do que, sabemos que a inclusão deve andar de mãos dadas com o conhecimento prático sobre o assunto. Temos quase 20 mil inscritos, mas confesso que não é tão fácil se expor. Há julgamentos, ataques. Você investe tempo e dinheiro, e, ainda assim, tem gente que acredita que você só quer aparecer. Temos contato com famílias de todo o Brasil e de algumas partes do mundo. E, quando alguma delas nos escreve dizendo o quanto estamos ajudando, ah..., isso faz as dificuldades parecerem grãos de areia.  

Em sua opinião, ainda há muito preconceito por parte da sociedade no que se refere aos transtornos de espectro autista? E como quebrar essa barreira?

A inclusão é um caminho sem volta em todo o mundo. Nossas leis são boas, mas ainda não são cumpridas por medo, incompetência ou desconhecimento. Assim, a sociedade reage ao desconhecido jogando para o lado, fingindo que não tem nada a ver com isso. Não percebem que nossa sociedade, assim como nosso  Brasil tão diverso, só enriquece com essas diferenças. Os filhos neurotípicos aprendem com os colegas deficientes a gerenciar conflitos, aprendem que todos temos um potencial e que dar condições às pessoas para manifestar esse potencial permite que a gente saia de um país que tem de pagar benefícios, ter gastos enormes, para um que gera riquezas e condições melhores para toda a população por meio dessa mão de obra ‘diferente’. Já ouvi que meu filho seria dependente para sempre. Como assim se esse profissional não conhecia meu filho?  ‘Para sempre’ é muito tempo para ficar parado. É preciso viver e descobrir possibilidades no caminho.

O que você diria para os pais que suspeitam que seus filhos tenham autismo ou para os que já receberam o diagnóstico? E para os adultos que estão na mesma situação?

Se eu disser que a caminhada é tranquila, sem sofrimento, estarei mentindo. Mas posso afirmar, com a força de minha vida e a de meu filho, que podemos muito quando jogamos luz nas habilidades. E é somente nosso filho, com os estímulos necessários, que poderá nos dizer até onde ele pode ir. Isso exige entrega, confiança, criatividade e observação. Se os desafios são muitos, as vitórias são bem maiores. Já para os adultos eu digo: vão atrás de seu diagnóstico. Nunca é tarde para se conhecer, para entender melhor a regra do jogo a fim de vencer aqui e agora.


  • LIVROS LANÇADOS:
  • “Outro Olhar – Reflexões de um Autista (2015)” – Victor Mendonça
  • “Danielle, Asperger” – um romance ficcional (2016) – Victor Mendonça
  • “Minha Vida de Trás pra Frente” (2017) – Selma Sueli
  • (Todos da Manduruvá Edições Especiais)

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