Natal, alguém morreu...

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 19 de Dezembro de 2013 Cultura
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Já há algum tempo, quando fiz um curso patrocinado pelos Recursos Humanos da empresa em que eu trabalhava, fui confrontado com a imagem, terrível, de uma criança que, em meio ao sofrimento horrível da fome e da desnutrição, era observada por abutres que aguardavam sua morte. A mensagem era objetiva: parem de “chorar suas próprias misérias”, porque existem pessoas realmente sofrendo no mundo!
 
A metáfora mórbida me fez refletir sobre um conto de fadas, que minha mãe contou quando eu era criança, chamado “A menina dos fósforos”, também conhecido como “A pequena vendedora de fósforos”, escrito pelo poeta Hans Christian Andersen (1805-1875). A história é a seguinte:
 
“Estava tão frio! A neve não parava de cair e a noite aproximava- se. Aquela era a última noite de dezembro, véspera do dia de Ano-Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre menininha seguia pela rua afora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que, ao sair de casa, trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe e ficavam-lhe tão grandes que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.
 
Por isso, a jovenzinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda gente que passava, apregoando: — quem compra fósforos bons e baratos? — Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre criança! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano-Novo. Nisso, sim, é que ela pensava.
 
Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um portal. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E, afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos!
 
Pegou num fósforo e: fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente a um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão.
 
Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a criancinha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de louças finas e, mesmo no meio da mesa, havia um ganso assado, com recheio de ameixas e purê de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da menininha. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria.
 
E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as montras das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu, então, que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz.
 
‘Foi alguém que morreu’, pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez: ‘Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu’.
 
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade! — Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado e como a árvore de Natal, tão linda.
 
Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.
 
Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma criancinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano-Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! — exclamou alguém.”
 
Pois é, tudo bem que a reflexão de que “chorar de barriga cheia” pode parecer tolice, porque, de fato, há sempre alguém em situação pior. Mas neste Natal, que para a cristandade simboliza o nascimento de Cristo, que teria morrido para salvar a humanidade, é o momento, sim, de refletir sobre como podemos permitir que pessoas morram de fome e vivam na miséria, sem que façamos nada para mudar o mundo em que vivemos.
 
Pessoas morrem, em nossas janelas e nas janelas de nossas televisões, e nós nos educamos para dizer que não é culpa nossa, que nada temos com isso, que nada podemos fazer; que a natureza é assim mesmo (os fortes sobrevivem); que certamente Deus vai, por fim, fazer alguma coisa; e que existe um desígnio, um mistério por trás de tudo isso, que será no fim desvendado. Lamento muito, desejo um Feliz Natal para todos! Um próspero ano novo! Mas tenho de dizer: alguém morreu, e todos o matamos.
 
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].

 




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