Os heróis da lama

Criado em 26 de Fevereiro de 2019 Bom Exemplo

Desastre de consequências incalculáveis que assolou Brumadinho, no fim de janeiro, serviu para mostrar o grande valor da solidariedade.

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REPORTAGEM ESPECIAL


O rompimento da barragem da mina de Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, no dia 25 de janeiro, comoveu todo o país. Os cerca de 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos atingiram a área administrativa da empresa, comunidades próximas, uma pousada e o rio Paraopeba, um dos principais cursos d’água do Estado. Até o fechamento desta edição, haviam sido contabilizados ao menos 166 mortos e 155 desaparecidos. Na quarta-feira 13 de fevereiro, completaram-se 20 dias de buscas. O trabalho, incluindo resgate in loco, apoio aos desabrigados e aos animais, chegou a reunir em Brumadinho mais de 300 bombeiros militares e 324 voluntários, segundo a Defesa Civil do Estado. Para auxiliar esse verdadeiro batalhão, foram usados 37 equipamentos pesados, como veículos anfíbios (que se locomovem em terreno líquido e sólido), retroescavadeiras, escavadeiras, pás-carregadeiras, caminhões de mineração, além de drones, balões meteorológicos, radares, GPSs e sensores para mapeamento.


Um dos grupos de voluntários que atuam nas buscas em Brumadinho foi o Suçuarana, especializado em operações de resgate; entidade trouxe para Minas 20 pessoas, vindas de Manaus, no Amazonas, São José dos Campos e Sorocaba, em São Paulo

No trabalho árduo e sem intervalo de buscas por vítimas em meio à lama tóxica, destaca-se a atuação dos bombeiros militares e civis, verdadeiros “super-heróis”, e das centenas de voluntários que vieram de vários Estados com o intuito único de contribuir. Eles atuaram em diversas frentes: no resgate, nas buscas em matas, na distribuição de donativos e no suporte aos desabrigados, até mesmo lavando as roupas dos bombeiros e dos demais que voltavam chamada zona quente.

O capitão Felipe Maciel, do Corpo de Bombeiros, coordena o trabalho com os voluntários que atuam na “zona morna”, compreendida entre as matas adjacentes onde houve o derramamento de lama. O foco é ajudar a localizar corpos para avisar aos bombeiros, autoridades competentes para fazer a retirada e entregar ao Instituto Médico-Legal (IML).

Sob a coordenação dele, atuaram cerca de 90 pessoas nos primeiros dias. A contribuição delas, conforme o militar, foi muito positiva. “A partir do momento em que nós coordenamos, e eles reconhecem nossa autoridade de liderança, passam a contribuir com as ações”, diz. Ele explica que muitas pessoas achavam que era simplesmente entrar na região para ajudar, mas o trabalho era melindroso e perigoso, tornando necessária a orientação dos bombeiros.

Segundo o capitão, muitos grupos chegaram a Brumadinho com estrutura própria de hospedagem, alimentação e equipamentos, permanecendo à disposição das autoridades à frente das ações. Um desses foi o Suçuarana, especializado em operações de resgate. A instituição trouxe para Minas 20 pessoas, vindas das três cidades onde tem sede: Manaus, no Amazonas, São José dos Campos e Sorocaba, ambas em São Paulo.

“Esse grupo veio com autonomia. Numa situação de desastre, o município não tem mais estrutura, e, quando chegam pessoas de fora com transporte próprio, alimentação e hospedagem, é muito importante, pois não demandam mais coisas de um cenário que já é de dificuldade”, destaca o militar.

O presidente do Suçuarana, Paulo Marinho, afirma que o grupo é composto por pessoas de diferentes profissões, que passam por treinamentos de resgate em situações de desastre.

A equipe conseguiu a doação das passagens com uma companhia aérea e chegou em Brumadinho no dia 1º de fevereiro para uma atuação de 15 dias, trazendo um cão farejador e equipamentos necessários para o trabalho. O grupo atuou nas buscas na “zona morna” juntamente com os bombeiros e chegou a auxiliar no rastreamento de corpos. Além disso, o grupo tem trabalhado em outras frentes, como na distribuição dos donativos, no auxílio às comunidades atingidas, na desinfecção dos militares que voltam para a base sujos com a lama tóxica e precisam levar jatos de água com produtos desinfetantes, entre outras.

“O diferencial da instituição é que temos know-how em navegação terrestre, em resgate em altura e na selva e estamos preparados para atuar em qualquer necessidade dentro das operações”, frisa Marinho.

Ele conta que a ação não chega a ser pesada emocionalmente porque o grupo treina e se prepara em simulados para lidar com a realidade. “É trágico e irreparável se deparar com uma vida perdida, mas é necessário ser profissional nessas situações”, pontua. “Nós nos motivamos em ajudar o próximo e entender que a necessidade dele é maior do que a nossa nessa situação”, completa.

Angústia de parentes de vítimas da lama da Vale que não conseguiram encontrar corpos é ainda maior. “Nós nos sentimos impotentes por não podermos dar resposta para todos”, diz o voluntário Fabrício Coelho

Experiência em desastres

Com vivência em atuação em locais de tragédia, o grupo dos bombeiros voluntários de Presidente Getúlio, em Santa Catarina, também esteve em Brumadinho. De acordo com o comandante da equipe, Amarildo Molinari, a instituição já trabalhou no desastre de Ilhota, no Estado sulista, quando a cidade foi atingida por 4.000 deslizamentos de terra, e 137 pessoas morreram, em 2008; em um dos terremotos de grande magnitude do Haiti; e no deslizamento em Niterói, no ano passado, que culminou em ao menos 14 mortos.

Tal como o Suçuarana, o grupo de Santa Catarina se apresentou voluntariamente ao posto de comando em Minas e ficou no local da tragédia por uma semana. Vieram 28 bombeiros voluntários e uma estrutura de peso para colaborar com os resgates: caminhonetes, ambulâncias e quadriciclos específicos para terrenos irregulares, drones, material para escavação, ferramentas hidráulicas e de suspensão (usadas para manusear ferro) e motosserras.

O grupo também trouxe toda a estrutura própria, como barracas e área de cozinha. Mesmo sendo voluntários, eles foram surpreendidos com outras ações, em uma corrente de solidariedade que se estendeu por todo o município. “Chegavam pessoas trazendo, dizendo que não precisávamos cozinhar para podermos descansar. Um cabeleireiro e um barbeiro também se ofereceram para nos dar suporte, além de pessoas para lavarem nossas roupas sujas das operações. A solidariedade era constante”, lembra.

A experiência nesses desastres foi usada pelo grupo na tentativa de localizar as vítimas para que as autoridades pudessem devolver os corpos para suas famílias. Uma das maiores dificuldades, segundo Molinari, era justamente correr contra o tempo para dar respostas aos parentes. “Sempre pesa quando escutamos o relato de algum familiar”, afirma.

Resposta para acalentar a dor

Localizar os corpos para poder acalentar um pouco a dor gerada pela falta de informações para as famílias foi um dos trabalhos dos voluntários do Instituto de Defesa Civil, Corpo de Emergências e Operações Táticas Nacional (Idec-Ceotan). De acordo com o coordenador da instituição, Júlio Ferreira Gonçalves, para fazer esse rastreamento, a equipe se embrenhou na mata, nas adjacências do caminho dos rejeitos. A atuação marcou todos do grupo.

Graças ao trabalho dos voluntários de equipes da Volunterminas, que reúne grupos de resgate voluntários de Minas Gerais, alguns corpos foram localizados em um percurso de 20 km do Córrego do Feijão até um vilarejo local

 

“Era um cenário de guerra. Um trabalho desgastante e perigoso, mas tivemos êxito em ajudar a localizar algumas vítimas para que os familiares pudessem ter uma tranquilidade mesmo em meio à dor”, ressalta.

O presidente da Volunterminas, Fabrício de Oliveira Coelho, instituição que reúne bombeiros e equipes de resgate voluntários de Minas Gerais, também ficou comovido com a angústia de famílias que aguardavam respostas sobre parentes desaparecidos. Uma equipe conseguiu apontar para os bombeiros militares a localização de alguns corpos em um percurso de aproximadamente 20 km de buscas do Córrego do Feijão até um vilarejo local.

“Por mais que a mídia mostre, só estando no local para ver a enorme proporção desse desastre. Muitos familiares nos viam e nos pediam ajuda, mas nos sentimos impotentes por não podermos dar resposta para todos na hora”, lamenta.

A Volunterminas também colaborou com a conscientização da população em relação às áreas de risco e orientou todos a não permanecerem nesses locais, além de ajudar na distribuição de água e de mantimentos para os desabrigados.

Animais atolados

Na hora do rompimento da barragem da Vale, muitos animais que estavam no caminho da lama de rejeitos não conseguiram escapar. Enquanto alguns morreram, outros ficaram atolados sem conseguirem se mover. Nas casas próximas do local do desastre que tiveram que ser abandonadas pelos moradores havia cachorros, pássaros, galinhas e outros bichos, que ficaram sozinhos, por dias, após a tragédia.

A equipe de socorro Anjos do Asfalto/MG, que atua na chamada “rodovia da morte”, no trecho da BR-381 entre Belo Horizonte e João Monlevade, dedicou tempo e esforço aos humanos atingidos pela lama e também aos animais. Um dos símbolos desse trabalho foi uma das vacas que estavam presas na lama. Após horas de tentativas, integrantes do grupo conseguiram retirá-la. Segundo Geraldo Eugênio de Assis, presidente do Anjos do Asfalto, que existe há cerca de 13 anos e conta com 32 membros, “o animal teve de ser eutanasiado, pois estava muito debilitado. “Houve uma primeira tentativa de resgate da vaca pela manhã, mas fomos impedidos pelas autoridades locais. À tarde, tentamos de novo. Mas ela já estava muito fraca”, relata. “O desastre foi de proporções assustadoras. Infelizmente, essa tragédia ficará marcada em todos”, lamenta Assis.

Vaca atolada em lama foi resgatada por voluntários da equipe Anjos do Asfalto, mas precisou ser eutanasiada por ter ficado bastante debilitada, já que grupo foi impedido por autoridades de retirar o animal em uma primeira tentativa

Os grupos de resgate também localizaram outros animais e ajudaram a capturá-los para encaminhar para uma fazenda na região alugada pela Vale, onde eles estão recebendo alimentação e tratamento por parte de veterinários e cidadãos voluntários.

ONG Proteção Animal Mundial é uma das entidades que se instalaram em Córrego do Feijão com o intuito de acolher e tratar os bichos abandonados por quem saiu da cidade ou atingidos pela lama de rejeitos de minério

Nesse local, foi montado um hospital de campanha para acolher diversas espécies de bichos e dar a eles o tratamento adequado. Conforme matéria publicada pela Agência Estado, até 3 de fevereiro, a Brigada Animal havia informado que ao menos 350 animais foram resgatados em Brumadinho. O número inclui bichos devolvidos aos donos ou acolhidos na fazenda onde funciona o hospital, no qual atuam 30 profissionais, entre veterinários e auxiliares, além de dezenas de voluntários.

“Atuamos como se fossem nossos pais e nossas mães”

Com um rosto sereno e as palavras firmes, o porta-voz do Corpo de Bombeiros, o tenente Pedro Aihara, tem sido o rosto conhecido em todo o mundo para levar informações sobre a tragédia de Brumadinho. Com apenas 26 anos, o militar conta que a maior dificuldade da corporação é pisar na lama em busca de corpos.

“Ao contrário do concreto ou da água, onde conseguimos identificar um corpo com mais facilidade, a lama fica entre o solo e o líquido. E a quantidade de rejeitos fadiga muito o militar”, explica.

A atuação incansável dos bombeiros vem sendo digna de elogios, que surgem de toda parte. Para Aihara, o reconhecimento veio agora, mas esse trabalho de salvamento os bombeiros desempenham diariamente. Ele destaca, com modéstia, que a corporação apenas faz aquilo para o que foi treinada e tem como missão. “Particularmente, não acho que merecemos reconhecimento, nem aplausos. Os verdadeiros heróis são os familiares, que, mesmo diante da angústia, seguem a vida”, pontua. “Vou cumprir todo o meu esforço, no sentido de expressar meu respeito às vitimas. Cada pessoa é uma vida, e estamos atuando nesse resgate como se fossem nossos pais e nossas mães”, finaliza.


Lavanderia solidária

Os militares trabalham cerca de 12 horas por dia. Os profissionais precisam desafiar os limites do corpo e da mente para conseguirem se manter ativos na lama de rejeitos de minério. Para atender esses guerreiros, um grupo de voluntários da Convenção Batista Mineira (CBM) montou uma lavanderia em Brumadinho com 13 máquinas para lavar as fardas dos bombeiros. A estrutura funciona praticamente o dia todo desde 28 de janeiro.

De acordo com o diretor da CBM, Márcio Santos, o grupo recebe as roupas sujas, higieniza-as e as entrega limpas para os militares no dia seguinte. “No dia em que fizemos a primeira entrega das roupas limpas, alguns chegaram a chorar, emocionados”, recorda-se. Segundo Santos, em torno de 200 roupas são lavadas diariamente desde quando a lavanderia foi montada.




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