A chance de um recomeço

SAÚDE

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Criado em 15 de Julho de 2014 Capa

Fotos: Muller Miranda

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Conheça comoventes histórias de pessoas que ajudaram o próximo, autorizando a doação de órgãos de seus entes queridos, e de cidadãos que recuperaram a saúde após passarem por um transplante 

Renata Nunes

FOI EM 2006, durante uma consulta médica de roti­na, que começaram a aparecer os primeiros sinais de que algo estava errado com a saúde do motoris­ta Fábio Luiz Gonçalves, 35. Com pressão alta, ele foi diagnosticado hipertenso e, após fazer exames mais específicos, descobriu o grave problema em ambos os rins. “A notícia foi um baque. De uma hora para a outra, fui informado que apenas 20% dos meus rins funcionavam. Desde então, iniciei a luta pela vida. Passei a fazer acompanhamento mé­dico por um ano e meio para adiar o tratamento que eu tanto temia: a hemodiálise.” Após um ano e seis meses, o quadro clínico de Fábio piorou, e ele teve de ser internado no Hospital Regional de Betim para realizar um tratamento intensivo de fil­tragem no sangue.

Por três anos e meio, três vezes por semana, e durante quatro horas ininterruptas, ele se subme­teu ao tratamento de hemodiálise, uma triste rea­lidade vivenciada, atualmente, por 210 pessoas no Regional. “Durante o tratamento, minha pressão ar­terial ficava muito alta ou muito baixa em minutos. Sentia cãibras frequentemente, sem falar na cons­tante sensação de enjoo e cansaço. Ficar quatro horas em uma cadeira, com o braço esticado para fazer hemodiálise, não é nada fácil”, afirma.

A esperança de ter uma vida saudável novamente veio somente quando Fábio aceitou fazer o transplante para receber um dos rins do irmão, Hélio de Souza Gonçalves Filho, 33. “Ver meu irmão livre da hemodiálise, levando uma vida nor­mal, era um desejo que também me faria feliz. Queria acabar com aquele sofrimen­to. Ser um doador é um privilégio na vida de uma pessoa, ainda mais, sendo para um irmão”, comove-se.

No dia 15 novembro do mesmo ano, data do aniversário de Fábio, os irmãos fo­ram internados no Hospital Universitário São José, em Belo Horizonte, e, dois dias depois, Fábio recebeu um novo rim. “Meu sentimento de gratidão a Deus e ao meu irmão será eterno. Ver minha vida renas­cer foi um milagre. O Hélio doou parte da vida dele para que a minha fosse res­taurada. Só tenho que agradecê-lo e aos médicos, que, com dom e sabedoria, fi­zeram com que o procedimento fosse um sucesso. Não posso deixar de mencionar o apoio que também tive da minha espo­sa e dos meus pais, que foram fundamen­tais”, salienta o motorista. Hoje, três anos após o transplante, Fábio leva uma vida totalmente normal.

Fábio (à direita) fez o tratamento de hemodiálise durante três anos e meio; ele recebeu o rim de seu irmão, Hélio, dois dias após seu aniversário

AMOR QUE FORTALECE

Outro emocionante gesto de amor e de solidariedade entre irmãos é a da dona de casa Maria de Fátima dos Santos Soa­res, 60, e de sua irmã, Lourdes Aparecida dos Santos Souza, 49. Com a insuficiência renal provocada por causas desconheci­das, apenas 30% dos seus rins funciona­vam, situação que também a levou a fazer diálise durante três anos. A esperança de vida veio somente quando ela descobriu a compatibilidade com a irmã, que se pron­tificou a doar um dos seus rins. “Sempre quis ser doadora e, vendo todo o sofri­mento de minha irmã, ofereci doar um dos meus rins. Só assim ela poderia voltar a ter uma vida saudável e tranquila”, diz Lourdes.

Inicialmente, Maria de Fátima resistiu. “Fiquei com medo de que aconteces­se algo ruim com a Lourdes. Eu não me perdoaria.” O que ela não sabia é que a cirurgia de transplante de rim não causaria malefícios para a irmã. “Os doado­res vivos de rim mantêm a vida normal e saudável após a doação, mas também precisam fazer acompanhamento médi­co para avaliação periódica do único rim funcionante que possuem, inclusive, para prevenir adequadamente eventuais doen­ças que possam comprometer seu órgão”, explica a médica e coordenadora da Orga­nização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital Regional, Paula Perdigão. “Após ser esclarecida sobre isso, mudei de ideia e, em 2011, o transplante aconteceu. Mas, antes disso, fiquei na fila de espera duran­te um ano”, revela Mária de Fátima.

Depois do transplante, o vínculo afe­tivo e o amor entre as irmãs, que já eram grandes, fortaleceram-se ainda mais. Mais que isso, Maria de Fátima aprendeu a im­portância de ser uma doadora. “Quando meu filho morreu, há 16 anos, fui contrá­ria à doação dos órgãos dele. Fiz isso por ignorância. Hoje, depois de tudo o que passei, vejo o quanto a doação é impor­tante”, salienta Maria de L ourdes.

No Brasil, 92% das cirurgias de trans­plantes realizadas são custeadas por um programa público. Em número de pro­cedimentos feitos anualmente, o país só perde para os Estados Unidos. Em Minas Gerais, por exemplo, somente de janeiro a maio deste ano, 880 mineiros ganharam vida nova graças à doação de órgãos. Mas, mesmo diante do sucesso do programa brasileiro, mais de 70 mil pessoas aguar­dam na fila do transplante. No Estado, se­gundo dados do MG Transplantes, atual­mente existem 2.376 mineiros à espera de um órgão. “Para que a doação aconteça, é necessário o órgão ser viável. Um dos grandes entraves é achar pacientes com diagnóstico de morte encefálica, ou seja, o coração estar batendo, mas a pessoa não tem mais atividade do sistema ner­voso central. Essa é a condição essencial para a doação”, explica Paula Perdigão.

O corpo de uma única pessoa pode sal­var várias vidas e beneficiar uma pessoa doente, caso órgãos como coração, pul­mão, pâncreas, rins, fígado, ossos e cór­neas sejam partilhados. Já no caso da doa­ção em vida, a compatibilidade sanguínea é primordial. Há também testes especiais para selecionar o doador que apresenta maior chance de sucesso. Os doadores vivos são aqueles que partilham um órgão duplo, como o rim, uma parte do fíga­do, o pâncreas, o pulmão, ou um tecido como a medula óssea. Contudo, esse tipo de doação só acontece se representar o mínimo de risco à saúde da pessoa que doa. “As doações intervivos ocorrem mais frequentemente entre familiares, pela maior possibilidade de compatibilidade entre eles”, esclarece coordenadora da OPO, Paula Perdigão.

Segundo ela, os casos dos irmãos Fá­bio e Hélio e das irmãs Lourdes e Maria de Fátima nem sempre refletem a realidade do transplante de órgãos no Estado. “A lis­ta de espera por um rim em Minas é bem maior do que a demanda. Em 2013, por exemplo, 535 órgãos foram doados no Estado, em contrapartida, 2.053 pessoas aguardavam por um rim no mesmo perío­do”, diz a especialista.

Para aqueles que estão na fila de es­pera, o motorista Fábio Gonçalves afirma que o importante é não desanimar. “Sem­pre busquei força em Deus. Quando pas­sei pela fila de espera, tinha a certeza de que meu dia chegaria. Só o que tenho a dizer é para as pessoas não desanimarem, nem se entregarem à doença. Façam tam­bém sua parte, tomando as medicações corretamente e ficando sempre atento às orientações dos especialistas, para que, quando chegar a sua hora de fazer o trans­plante, você esteja preparado”, reforça.

UM NOVO OLHAR

Quem também nunca desistiu de re­ceber um órgão e poder, assim, começar uma vida nova é a administradora Jeze­bel Gomes da Silva, 32. Aos 14 anos, ela foi diagnosticada com ceratocone, uma doença progressiva congênita que pode causar a perda da visão. Dificuldades para visualizar o que professor escrevia no quadro em sala de aula e para dirigir, prin­cipalmente, à noite, eram constantes na vida dela. Até que, em 2009, a necessida­de de receber um transplante de córnea ficou evidente. “Já não enxergava bem e, de repente, surgiu uma mancha branca no meu olho direito. Passei a ver as imagens esbranquiçadas e apenas vultos”, conta.

A notícia de que precisava de um trans­plante de córnea deixou a administradora assustada. Durante um ano, ela aguardou na fila de transplante de córnea e, quan­do finalmente chegou a sua hora, o medo falou mais alto. “Da primeira vez que fui chamada para o transplante, não aceitei. Estava com receio e insegura. Mas, em 2012, como minha visão piorou mais, tomei coragem e aceitei fazer o proce­dimento”, revela. A cirurgia durou cerca de uma hora e meia e Jezebel teve alta no mesmo dia. “Foi um procedimento tran­quilo e rápido”, afirma. 

A alegria de ter um futuro melhor é co­memorada pela administradora, que aler­ta para a importância da doação. “É fun­damental autorizar, em vida, a doação de órgãos para garantir que as pessoas que estão na fila de espera possam ter uma vida normal e uma esperança no futuro. Todos os dias, peço a Deus que abençoe a família que autorizou a doação da cór­nea do parente falecido para mim. Se não fosse por esse ato de amor ao próximo, eu não estaria aqui hoje, transplantada, enxergando bem e muito feliz”, salienta.

Há cerca de dois meses, em Betim, o Hospital Regional conta com o empenho e a dedicação de uma equipe de profissio­nais que fazem a captação de órgãos na unidade. A Organização de Procura de Ór­gãos (OPO) é formada por uma médica e dois enfermeiros capacitados para identi­ficar potenciais doadores e apoiar todo o processo de doação das famílias. E a atua­ção deles, que também tem como objetivo aumentar o número de órgãos doados no Estado, tem dado certo. Desde maio, por exemplo, 34 córneas foram doadas. “São 34 pessoas que foram beneficiadas e pu­deram, talvez, voltar a enxergar”, salienta a médica Paula Perdigão. “Essa conquista somente foi possível com a colaboração dessas famílias. Cada vez mais, as pessoas estão se conscientizando da importância de doar, um ato de amor que salva vidas.”

A VIDA DE PRESENTE

Foi esse desejo de fazer o bem ao próximo que motivou a família da fotó­grafa Renata Chaban Garcia, 24, a optar pela doação dos seus órgãos. Em 1998, ela morreu de forma repentina, em um acidente de carro que abalou toda a fa­mília. “Ela estava em uma estrada perto de Governador Valadares, voltando do trabalho, com o marido. Já era madrugada e chovia. Por causa de outro acidente ocorrido na estrada, a Polícia Rodoviária Federal teve de fechar um lado da pista. O último carro da fila, que se formou com essa retenção, era um caminhão. O motorista parou o veículo, porém, não ligou pisca-alerta. Com a chuva e o cansaço, o marido da minha irmã, que estava ao volante, não viu a pista parada e bateu na traseira do veícu­lo. Ele morreu na hora e minha irmã foi levada ainda com vida para o hos­pital, mas em estado gravíssimo. Ela ficou internada no CTI, porém, um dia depois do acidente, foi compro­vada a sua morte cerebral”, conta a irmã de Renata, Waleska Chaban, 40.

Apesar de desolados e de estarem vivendo um dos piores momentos de suas vidas, os familiares não dei­xaram de lado o sentimento de soli­dariedade e, com o intuito de ajudar a renascer outras vidas, autorizaram a doação dos órgãos da fotógrafa. “Não me lembro se a Renata já havia manifestado o desejo de doar seus órgãos, mas ela gostava de ajudar as pessoas. Por isso sabemos que fize­mos a coisa certa. Não consigo ima­ginar uma contribuição maior para alguém do que doar um dos órgãos para outra pessoa”, diz Waleska.

Renata teve os rins, as duas cór­neas e o coração doados. O senhor com idade avançada que recebeu o seu coração não sobreviveu. Já uma criança com problemas mentais que recebeu suas córneas recuperou a visão. “Conhecemos a família dessa criança. Foi muito gratificante, mes­mo diante da dor da perda, poder­mos nos alegrar em ajudar alguém”, afirma a mãe de Renata, Sônia Cha­ban, 68.

O louvável gesto da família da fo­tógrafa, porém, não é partilhado por grande parte dos brasileiros. Mesmo nos dias atuais, apesar de todas as campanhas de esclarecimento, ainda há muita desinformação sobre o as­sunto, o que impede a evolução do número de transplantes. “Deixamos bem claro para os familiares que a decisão de doar é deles. Fazemos nossa parte, expli­cando todos os procedimentos, mas, às vezes, a negativa fala mais alto, pois há conflito entre os familiares, que não en­tram em um consenso”, afirma a médica Paula Perdigão. “Também estão entre os motivos de algumas famílias não autori­zarem a doação não saberem se o ente querido gostaria que seus órgãos fossem doados, por crenças religiosas, por desco­nhecerem o processo de doação e pelo tempo necessário para que o procedi­mento aconteça”, completa.

No ranking dos transplantes realiza­dos em Minas Gerais, está a doação de córnea, tecido que pode ser retirado até seis horas após a morte da pessoa. Se­gundo dados do MG Transplantes, entre 2012 e maio deste ano, foram realizadas 3.345 cirurgias desse tipo. Rim e fígado aparecem em segundo e terceiro luga­res, com 1.345 e 221, respectivamente. O transplante de coração assume a quarta posição, com 77 cirurgias, e de pulmão é o menos frequente, com apenas três casos. “O principal motivo desse entrave é que, para realizar a doação do pulmão e do coração, é necessário fazer exames mais complexos na pessoa que faleceu e, em alguns casos, o hospital onde o paciente foi a óbito não dispõe de equi­pamentos suficientes para realizar esses exames”, explica a especialista.

A RENOVAÇÃO

O comerciante Túlio Agostinho Cândi­do, 46, também recebeu um presente que salvou a sua vida. Após ter sido diagnosti­cado com cirrose hepática, adquirida por fatores genéticos, a necessidade de um transplante de fígado foi eminente. “O médico falou que, se não fizesse o pro­cedimento, eu morreria.” A espera pelo órgão durou 11 meses e, em 2012, ele foi transplantado. “Não tive problemas com rejeição e tive uma recuperação tranquila, graças a Deus, embora tenha precisado tomar muitos medicamentos logo depois do transplante”, lembra.

Antes de fazer um transplante de fígado, Túlio ficou 11 meses na fila de espera
 

Hoje, um ano e sete meses após a ci­rurgia, ele leva uma vida normal. “Mas preciso ter cuidado com meu peso e com minha alimentação. Também tomo seis medicamentos ao dia, contra a re­jeição, que não afetam meu desempe­nho diário.” Emoção e gratidão são os sentimentos de Túlio em saber que uma família, mesmo em um momento de dor profunda, teve a generosidade de dar a ele a oportunidade de continuar viven­do. “Ganhei qualidade de vida. Melhorei corpo, alma e mente”, revela. “Não tenha medo de doar os órgãos, nem em vida, nem quando morrer. Certamente, sua generosidade dará a oportunidade de pessoas continuarem a viver e refazerem suas histórias. E podem ter certeza de que o MG Transplantes é um dos órgãos mais sérios e competentes que existe para isso”, aconselha Túlio. 

 




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