A magia da tradição
Cultura
Fotos: Luciano Reis
DIA 5 DE SETEMBRO DE 1965. O Gigante mineiro abria seus portões para primeira vez para receber o primeiro jogo de sua história: River Plate, da Argentina, versus seleção mineira. A arena, é verdade, não estava lotada, mas o boato que se espalhou na capital na época, dias antes da inauguração, de que a construção foi malfeita não conseguiu tirar o brilho daquele que se tornou uma paixão dos mineiros. Seja atleticano, seja cruzeirense, seja americano, não há quem não sinta emoções inexplicáveis quando entra em contato com um dos maiores palcos do futebol nacional e internacional, o Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão. E a experiência de ir a esse esplendoroso estádio vai além, ganhando aromas e sabores inesquecíveis, sobretudo para quem desfruta do famoso tropeiro.
Marco na história da culinária mineira, o tradicional prato, que era servido no estádio antes da reforma de 2010, mudou. Muitos torcedores alegam que ele perdeu a magia e o sabor insuperáveis. Mas, polêmicas à parte, quem nunca ouviu falar do tropeirão? Era nesse bar, localizado na entrada do portão 13, que se vendia a mais popular iguaria de todo o estádio, em um pratinho de plástico, com arroz, couve, torresmo, ovo frito, pernil de porco e, é claro, o feijão tropeiro. Não se pode esquecer a cereja do bolo: o molho de tomate, que dava um toque final espetacular ao prato. “Minha tia Lola, irmã da minha mãe (Euvina de Oliveira, de 72 anos), foi convidada para atuar no estádio logo após a inauguração. Ela cuidava dos bares 11, 12 e 13, e, como o 13 não tinha muita visibilidade, por causa da localização, ela apostou no tropeiro para aumentar o movimento. O sucesso foi tanto que ela não conseguiu mais atender à demanda do estádio, e os outros bares passaram a vender o prato também. Quando ela deixou o bar, repassou para minha mãe”, conta Eliane Assis, 48, que ficava no caixa enquanto a mãe comandava a cozinha.
O segredo de tantas glórias e admiradores do prato, durante as décadas em que ele foi comercializado na arena, é herança de família. Dona Vina, como era conhecida pelos torcedores, manteve a receita feita pela irmã e esteve à frente do extinto bar por 38 anos. “Para se ter uma ideia, a vasilha para dosar a farinha tem 50 anos. A receita do molho e do tempero da carne é segredo de estado. As pessoas que sabem fazer são apenas minha tia, minha mãe, eu, minhas duas irmãs e uma cozinheira nossa”, brinca Eliane.
O carinho e a dedicação dispensados à famosa iguaria surtiram efeito: 4.300 tropeiros servidos no mesmo dia, ocasião em que havia cerca de 90 mil torcedores no estádio, em um jogo da Recopa, é o recorde de vendas do tropeiro. “As melhores lembranças que tenho na vida estão no Mineirão. Aos 10 anos, comecei a ajudar no bar. Minha irmã e eu fomos criadas debaixo do balcão do Mineirão. Conheci meu marido lá, e meus filhos quase nasceram dentro do estádio. O ambiente era peculiar e familiar. Fizemos grandes amigos. Por isso, fazer parte da história do estádio é um orgulho. Lembro que as pessoas ficavam horas na fila, esperando o prato, e não reclamavam. Se você bobeasse, tinha um bife roubado. Muitas pessoas compravam marmitex e levavam para casa. Tinha gente que chegava com toda a família para almoçar, fora as quentinhas que vendíamos para a polícia e os repórteres. Era mágico. A gente olhava todos nos olhos, dava atenção. Hoje, as coisas lá são muito diferentes”, constata.
MUDANÇA DE ENDEREÇO
O saudosismo de Eliane se justifica. Logo após a reforma do estádio, a família resolveu criar asas e não renovou o contrato com a administração. Assim, o Tropeiro do 13 mudou de endereço, funcionando hoje no bairro Planalto, com status de restaurante. “Como os bares teriam que seguir um estilo tropeiro gourmet para atender a uma exigência da nova administração do local, preferimos continuar fazendo o tradicional prato fora do Mineirão”, explica a empresária. “Confesso que, quando saí, senti muito. Nos primeiros meses, perdi oito quilos. Fiquei apaixonada”, completa.
Quem é frequentador do estádio sente falta dos tempos de glória e também do molho de tomate irrigando a couve e do “zoiudo”, como é apelidado o ovo frito por cima do tropeiro. “Quando fui ao estádio pela primeira vez, em 1989, foi paixão à primeira vista. Achei o tropeiro uma delícia, mas muito diferente do prato que é vendido lá hoje”, conta a cruzeirense Janete Reis, 58 anos, para quem a tradição do tropeiro do Mineirão acabou.
No restaurante do Planalto, é óbvio, não há torcedores aos gritos, pratos, talheres e feijão voando sobre as cabeças a cada gol, mas Eliane tenta compensar o alvoroço das emoções futebolísticas mantendo a qualidade do prato. “Confesso que não esperava que o torcedor do Mineirão nos buscasse. Foi uma grata surpresa. Todos os dias, vendemos o tropeiro, que continua sendo nosso carro-chefe, mas incrementamos o cardápio com pratos diferentes”, informa Eliane.
A boa-nova vem se espalhando entre os mineiros, que, diante da nostalgia do antigo tropeirão, têm agora destino certo após os jogos. “O tropeiro faz parte da história do estádio, e a mudança para um preparo mais industrializado fez com que a cultura do local perdesse um pouco de sua identidade. A reforma trouxe melhorias, mas, nesse quesito, houve uma perda. Por isso, quando tenho vontade de degustar o prato, vou ao restaurante da Eliane”, conta o atleticano Christiano Rocha, 34. Para Bruno Carvalho, 32, também torcedor rubro-negro, apesar de o tropeiro do Mineirão ter ficado mais saudável, ele perdeu sua essência, a de ser uma comida tipicamente mineira. “O sabor não é o mesmo. Quando vou lá, só se estou com muita fome é que como dentro do estádio”, salienta.
NO ESTILO GOURMET
A venda do feijão tropeiro no Mineirão, atualmente, passa por um organizado e padronizado processo, sob responsabilidade da Gourmet Sports, gestora das concessões e da hospitalidade do estádio. No total, são 58 bares, sendo 16 servindo o tropeiro, e quatro gestores diferentes de bares de tropeiro. “Três deles atuam no estádio há mais de 20 anos. O outro gestor era ambulante e trabalhou no entorno do estádio com sua família. Na reforma, os ambulantes foram convidados a participar da formação dos serviços de alimentação de dentro do estádio. Quando houve uma oportunidade de abertura de bares, devido à demanda, o mesmo mostrou interesse e veio compor o quadro”, explica o nutricionista do Mineirão, Gustavo Cunha.
Segundo o especialista, com exceção do ovo, temporariamente retirado do prato devido ao risco sanitário no fornecimento do produto, a receita do tropeiro foi mantida. “Fomos orientados a utilizar o ovo pasteurizado, porém ele descaracterizaria o prato. Estamos analisando junto ao órgão sanitário o melhor caminho para a reinserção do item”, salienta Cunha.
Mesmo apesar das mudanças, o Minas Arena, administrador do Gigante, garante que o novo prato está sendo bem-aceito pelos frequentadores. “Em partidas com grande público, próximo a 40, 50 mil torcedores, são consumidas, em média, 14 mil unidades do tropeiro. Esse número varia bastante, dependendo do horário da partida. Percebemos que, em jogos noturnos e no domingo, às 16h, o consumo é ainda maior”. “A história do tropeiro e do Mineirão se confundem. Difícil imaginar o estádio sem o tradicional prato da culinária mineira. Até mesmo na Copa do Mundo, a Fifa entendeu que seria importante a comercialização desse ‘cartão de visitas’ do Mineirão para turistas e torcedores”, pondera a assessoria do Minas Arena.