A MARCHA DAS DESPOJADAS

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 13 de Fevereiro de 2015 Cultura
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“Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da carida­de.” (Paulo Freire)

GOSTO DA PALAVRA “DESPOJADA”, do duplo sentido e da natureza antagônica de seus significados. Posso dizer que determinada figura é despojada para significar sua irre­verência e sua forma de ser despreocupada com a opinião dos outros. Posso também usar a palavra “despojada” para explicar “destituída”, “roubada”, “privada de valores e bens”. Assim: “Os salteadores despojaram a donzela de seus trajes e de sua honra”. Para falar desse fenômeno notável, a pros­tituição, elegi esse título, que, por sua am­biguidade, me permitirá caminhar perdido por tema no qual me sinto pouco seguro.

De início, queria estabelecer algumas linhas sobre as quais tenho mais segu­rança e que me ajudarão a dar norte à matéria, como uma velha bússola ou um astrolábio nas mãos de um navegador disposto a cruzar mares revoltos e tem­pestuosos nos velhos barcos de outrora. Primeiramente, escrevo apenas sobre a prostituição feminina, obstante saiba bem da existência da prostituição masculina e de transexuais e transgêneros. Faço isso somente para não trazer matérias dentro de matérias, tornando o tema muito com­plexo para a coluna. Em segundo lugar, reconheço, incondicionalmente, o direito da mulher madura emocionalmente de dispor o próprio corpo, por dinheiro ou não, e, assim, afasto a prostituição infantil destas considerações. Em terceiro, consi­dero o trabalho de prostituição subordi­nado a terceiros, à míngua de qualquer direito social, situação análoga à escravi­dão. Feitas essas ponderações, zarpo para minhas indagações a respeito do tema.

Fenômeno antigo, a prostituição é considerada, popularmente, a mais anti­ga do mundo. Já foi associada a poderes mágicos, a ritos sagrados e, na Grécia e no Japão da antiguidade, era praticada por cortesãs cultas, educadas e no bojo de cerimoniais em que a música, a poesia, a filosofia, as artes da mesa e os rituais re­ligiosos eram, muitas vezes, um conjunto do qual o sexo fazia parte.

Com o surgimento da sociedade pa­triarcal, a hegemonia do homem e o con­comitante aparecimento da propriedade privada, a prostituição passou a ser uma atividade malvista e “maldita”. Maria Regi­na Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em história e coordenado­ra do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela socieda­de é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem-definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.

Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, cria­dora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, conta Nickie Roberts no livro “As Prostitutas na História”. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhe­cida, inicialmente, como Inanna e, mais tarde, como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram ob­sessivos pela paternidade. Mais tarde, essa preocupação com a prole levou ao surgi­mento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

Ao mesmo tempo em que a prostituição foi combatida, ao longo da história, por re­ligiosos, políticos e magistrados – e seus braços armados (amados ou não) –, as prostitutas sempre foram igualmente pa­trocinadas pelas elites sociais que as perse­guiam. E, com o tempo, a cultura informal dividiu o “baixo meretrício” – sistema em que as prostitutas atendem aos trabalhado­res e à base de nossa pirâmide social – do “alto meretrício”, no qual elas oferecem o serviço àquelas pessoas que possuem re­cursos econômicos para pagá-lo.

Durante toda a história, as prostitutas foram (e ainda são) perseguidas, tortu­radas e mortas aos milhares, por paus, pedras, açoites, forcas, clausura e todo instrumento de maldade concebido pela engenhosidade humana. Foram e são es­tupradas, frequentemente, nas sombras e dobras do ofício. São escravizadas e, com o fim do viço da juventude, morrem des­pojadas de qualquer direito social, como foi com Hilda Furacão (Hilda Maia Valen­tim), que morreu solitária, na Argentina, após ser eternizada pela obra de Roberto Drummond e na minissérie exibida, em 1998, pela TV Globo, na qual a atriz Ana Paula Arósio representou a personagem.

Mas nada disso fez com que a prostitui­ção desaparecesse. Ela ocupa lugar desta­cado no imaginário coletivo, como ilus­trado nas obras literárias de Jorge Amado, Charles Baudelaire, José de Alencar, Ga­briel García Márquez, Orígenes Lessa, Má­rio Andrade, Roberto Drummond, Adolfo Caminha, e, na própria Bíblia, para citar o mínimo. No universo da pintura, essas mulheres são lembradas por Pablo Picas­so, Egon Schiele, Toulouse-Lautrec, Édou­ard Manet e outros tantos.

A revolução sexual dos anos de 1960, que incluía uma maior aceitação do sexo fora das relações heterossexuais e monogâmicas tra­dicionais (principalmente do casamento), assim como a contracepção e a pílula, a nu­dez em público, a normalização da homos­sexualidade e outras formas alternativas de sexualidade, além da legalização do aborto, foram fenômenos que começaram a ganhar força nas sociedades ocidentais e deram a impressão a alguns analistas de que a prosti­tuição já não tinha sentido lógico de existên­cia. Contudo, ela se manteve.

Não enxergo análises ou soluções fáceis. Vejo apenas o que é óbvio: a cultura humana nunca dispôs de recursos capazes de impe­dir a prostituição e, talvez, nunca tenha exis­tido vontade real nesse sentido. Toda pessoa é livre para usar seu corpo como melhor lhe convém; não é admissível nenhuma maneira de trabalho escravo, o que quer dizer que qualquer atividade humana legítima tem que ser protegida sob o manto de direitos trabalhistas, previdenciários, sociais e huma­nos do Estado em que é exercida. Ninguém deve ser constrangido, por força de miséria social, ao exercício de atividade que não deseje desempenhar. Contudo, de maneira geral, para evitar o risco de propagação de doenças sexualmente transmissíveis, é im­portante a presença dos setores do poder público vinculados à saúde e à visibilidade social da prostituição.

Por fim, o que é óbvio, mas não simples, vem aquele desejo de que sejam assegura­das, a todos, as condições socioeconômicas e psicossociais, para que trabalhem apenas naquelas atividades para as quais são real­mente vocacionados, com absoluto respei­to dos demais. O que cogito, com a impres­são de que, nessa utopia, muitas profissões das mais humildes desapareceriam, é que a prostituição reacenda ao velho estatuto de lugar de mulheres sábias.

* Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia, psicanálise e professor de judô 




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