A MARCHA DAS DESPOJADAS
POR Domingos de Souza Nogueira Neto*
“Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” (Paulo Freire)
GOSTO DA PALAVRA “DESPOJADA”, do duplo sentido e da natureza antagônica de seus significados. Posso dizer que determinada figura é despojada para significar sua irreverência e sua forma de ser despreocupada com a opinião dos outros. Posso também usar a palavra “despojada” para explicar “destituída”, “roubada”, “privada de valores e bens”. Assim: “Os salteadores despojaram a donzela de seus trajes e de sua honra”. Para falar desse fenômeno notável, a prostituição, elegi esse título, que, por sua ambiguidade, me permitirá caminhar perdido por tema no qual me sinto pouco seguro.
De início, queria estabelecer algumas linhas sobre as quais tenho mais segurança e que me ajudarão a dar norte à matéria, como uma velha bússola ou um astrolábio nas mãos de um navegador disposto a cruzar mares revoltos e tempestuosos nos velhos barcos de outrora. Primeiramente, escrevo apenas sobre a prostituição feminina, obstante saiba bem da existência da prostituição masculina e de transexuais e transgêneros. Faço isso somente para não trazer matérias dentro de matérias, tornando o tema muito complexo para a coluna. Em segundo lugar, reconheço, incondicionalmente, o direito da mulher madura emocionalmente de dispor o próprio corpo, por dinheiro ou não, e, assim, afasto a prostituição infantil destas considerações. Em terceiro, considero o trabalho de prostituição subordinado a terceiros, à míngua de qualquer direito social, situação análoga à escravidão. Feitas essas ponderações, zarpo para minhas indagações a respeito do tema.
Fenômeno antigo, a prostituição é considerada, popularmente, a mais antiga do mundo. Já foi associada a poderes mágicos, a ritos sagrados e, na Grécia e no Japão da antiguidade, era praticada por cortesãs cultas, educadas e no bojo de cerimoniais em que a música, a poesia, a filosofia, as artes da mesa e os rituais religiosos eram, muitas vezes, um conjunto do qual o sexo fazia parte.
Com o surgimento da sociedade patriarcal, a hegemonia do homem e o concomitante aparecimento da propriedade privada, a prostituição passou a ser uma atividade malvista e “maldita”. Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em história e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem-definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, conta Nickie Roberts no livro “As Prostitutas na História”. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida, inicialmente, como Inanna e, mais tarde, como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Mais tarde, essa preocupação com a prole levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.
Ao mesmo tempo em que a prostituição foi combatida, ao longo da história, por religiosos, políticos e magistrados – e seus braços armados (amados ou não) –, as prostitutas sempre foram igualmente patrocinadas pelas elites sociais que as perseguiam. E, com o tempo, a cultura informal dividiu o “baixo meretrício” – sistema em que as prostitutas atendem aos trabalhadores e à base de nossa pirâmide social – do “alto meretrício”, no qual elas oferecem o serviço àquelas pessoas que possuem recursos econômicos para pagá-lo.
Durante toda a história, as prostitutas foram (e ainda são) perseguidas, torturadas e mortas aos milhares, por paus, pedras, açoites, forcas, clausura e todo instrumento de maldade concebido pela engenhosidade humana. Foram e são estupradas, frequentemente, nas sombras e dobras do ofício. São escravizadas e, com o fim do viço da juventude, morrem despojadas de qualquer direito social, como foi com Hilda Furacão (Hilda Maia Valentim), que morreu solitária, na Argentina, após ser eternizada pela obra de Roberto Drummond e na minissérie exibida, em 1998, pela TV Globo, na qual a atriz Ana Paula Arósio representou a personagem.
Mas nada disso fez com que a prostituição desaparecesse. Ela ocupa lugar destacado no imaginário coletivo, como ilustrado nas obras literárias de Jorge Amado, Charles Baudelaire, José de Alencar, Gabriel García Márquez, Orígenes Lessa, Mário Andrade, Roberto Drummond, Adolfo Caminha, e, na própria Bíblia, para citar o mínimo. No universo da pintura, essas mulheres são lembradas por Pablo Picasso, Egon Schiele, Toulouse-Lautrec, Édouard Manet e outros tantos.
A revolução sexual dos anos de 1960, que incluía uma maior aceitação do sexo fora das relações heterossexuais e monogâmicas tradicionais (principalmente do casamento), assim como a contracepção e a pílula, a nudez em público, a normalização da homossexualidade e outras formas alternativas de sexualidade, além da legalização do aborto, foram fenômenos que começaram a ganhar força nas sociedades ocidentais e deram a impressão a alguns analistas de que a prostituição já não tinha sentido lógico de existência. Contudo, ela se manteve.
Não enxergo análises ou soluções fáceis. Vejo apenas o que é óbvio: a cultura humana nunca dispôs de recursos capazes de impedir a prostituição e, talvez, nunca tenha existido vontade real nesse sentido. Toda pessoa é livre para usar seu corpo como melhor lhe convém; não é admissível nenhuma maneira de trabalho escravo, o que quer dizer que qualquer atividade humana legítima tem que ser protegida sob o manto de direitos trabalhistas, previdenciários, sociais e humanos do Estado em que é exercida. Ninguém deve ser constrangido, por força de miséria social, ao exercício de atividade que não deseje desempenhar. Contudo, de maneira geral, para evitar o risco de propagação de doenças sexualmente transmissíveis, é importante a presença dos setores do poder público vinculados à saúde e à visibilidade social da prostituição.
Por fim, o que é óbvio, mas não simples, vem aquele desejo de que sejam asseguradas, a todos, as condições socioeconômicas e psicossociais, para que trabalhem apenas naquelas atividades para as quais são realmente vocacionados, com absoluto respeito dos demais. O que cogito, com a impressão de que, nessa utopia, muitas profissões das mais humildes desapareceriam, é que a prostituição reacenda ao velho estatuto de lugar de mulheres sábias.
* Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia, psicanálise e professor de judô