A nobre arte da Cutelaria

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 08 de Outubro de 2014 Cultura

Fotos: Divulgação

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AO SE AFASTAR DA IDADE da pedra e iniciar o período da dominação do fogo, a huma­nidade aprendeu a manipular os metais. A evolução dessa arte para a construção de utensílios, ferramentas e armas foi defini­tiva para a sobrevivência e a evolução da espécie humana. Dentro disso, a cutela­ria, armiaria ou armoaria é a arte ou ofício do cuteleiro ou cutileiro, armiário, armo­ário ou acerador, ou seja, a pessoa que fabrica ou vende instrumentos de corte. São produtos da cutelaria, portanto, es­padas, adagas, facas, facões, machados, punhais, navalhas e todos os utensílios metálicos de corte.

Na história dessa arte, praticada, an­tigamente, por pessoas humildes, que se ajoelhavam diante de reis, temos as lendárias katanas (pronuncia-se cata­nás); as espadas de Toledo, dos nossos romances medievais, os punhais feitos para príncipes e princesas e os espada­chins lendários.

A história dessas lâminas começou com o cobre, passou pelo estanho, bron­ze e ferro – que queimava a temperaturas mais baixas na fundição. Porém, com o desenvolvimento das técnicas de uso do fogo, das ligas metálicas e da dobradura do metal (inicialmente, com bigorna e martelo), surgiram várias qualidades de aço e peças cada vez mais expressivas.

Em todos os países do mundo, atual­mente, realizam-se periodicamente en­contros em que mestres cuteleiros apre­sentam suas principais peças. No Brasil, o mais importante é a Mostra Internacional de Cutelaria, promovida anualmente em São Paulo e que em sua última edição reuniu nomes como Dionatam Franco, Celso Luiz Fernandes, Rodrigo Sfredo, Silvana Mouzinho, Sandro Boecck, Ricar­do Vilar, Alessandro Cicliani, André Klen, Cássio Becker, Facundo Montenegro, Luiz Gustavo Gonçalves, Marcos Cabete, Ro­naldo Francescchi, Tiago Silva, Victor Fa­rias, João Batista, Alexandre Bianco, Edu­ardo Berardo, Pedro Lopes, Luis Carlos Serapião, Kleber Reche Garcia, Andrey Navarre, Helio Boeck, Yuri Fernandes, Peter Hammer, Samir Haddad, Toma, Rick Lala, Edwin Weiler, Celso Nogueira, Ale­xandre Maranhão, Nestor China e Remo Nogueira.

Como se vê, há diversos cuteleiros ar­tesãos no Brasil, que produzem material de excelente qualidade, sendo reconhe­cidos internacionalmente, a exemplo de Rodrigo Sfreddo, que em 2009 recebeu pela American Bladesmith Society o títu­lo de Master Smith, o primeiro da Amé­rica Latina. Na ocasião, Sfreddo empatou duas de suas peças em primeiro lugar e foi premiado com o B.R. Hugues Award, concedido à melhor faca submetida a jul­gamento pelos aspirantes ao título.

Na cutelaria, como nas artes, a produ­ção artesanal, mesmo quando diminuta, tem status de artigo de luxo, único, sendo que, contrariamente à indústria em geral, há uma tendência ao trabalho artesanal da parte da maioria dos cuteleiros nacionais atualmente, para quem o avanço em ma­quinaria é visto com maus olhos (“a má­quina não apresenta a qualidade e esmero que o artesão dedica”).

Na capital mineira, existe um artesão lendário, com têmpera e temperamento de gênio: o mestre Antal Bodolay. Con­forme informações do site Cutelaria Ar­tezanal: “O senhor Antal Bodolay, um exemplo da cutelaria artesanal, começou a fabricar facas artesanais aos 15 anos e se tornou um dos maiores e melhores cute­leiros do país, sendo um dos pioneiros nessa arte no Brasil. Ele tinha preferên­cia por Bowies, modelos utilitários para defesa, e era um dos raros a produzir boas espadas. Antal, um imigrante hún­garo, desembarcou em Belo Horizonte ainda bebê. Junto com Roberto Gaeta e Padilha, fez parte de uma geração que valorizava e divulgava o melhor em facas artesanais, que ficaram conhecidas como 'faca custom'. Antal começou a forjar suas próprias facas devido a um fato no mínimo muito curioso: ele ganhou uma faca de seu pai, que, nessa época, custa­va muito caro, e com ela foi cortar um bambu. Contudo, a faca decepcionou, e muito, pois além de não cortar empe­nou. Com isso, ele decidiu que dali para frente fabricaria suas próprias facas – e assim foi. Dessa forma, correu mais de 50 anos e, neste meio século, saíram de suas mãos verdadeiras obras de arte em facas e espadas que se valorizam a cada dia.”

As peças de cutelaria artesanal, se­gundo ilustramos com as imagens desta coluna, são joias, peças de colecionador, únicas, preciosas e inusitadas. Na Univer­sidade de Brasília (UnB), considerada a segunda escola de cutelaria do mundo, existe um curso de extensão de cutela­ria denominado Curso de Cutelaria Ar­tesanal. A iniciativa se deu após a cidade promover quatro edições do Salão de Cutelaria de Brasília e é fruto da parceria estabelecida entre o Instituto de Artes da UnB e a Sociedade Brasileira dos Cutelei­ros (SBC). Outra parceira de sucesso com a SBC é a da Cutelaria Corneta, através da Escola de Cutelaria Artesanal, onde o cuteleiro Ricardo Vilar tem ministrado cursos desde setembro de 2010.

Então, para aqueles que se inflam ao dizer que não gostam de artes, mas, sim, de armas, e para aqueles outros tantos que pretendem desarmar o mundo atra­vés das artes, só posso dizer que existem lâminas infinitamente belas, obras que se integram com nobreza ao patrimônio artístico e cultural da humanidade, e que até o mais importante dos medicamentos tem de ser usado conforme uma prescri­ção de ética e de sabedoria. Assim, não podemos culpar os produtos de nossa cultura por nossa ignorância ou brutalida­de, porque somos atores de nossa histó­ria, e não vítimas. E todo uso tem a ver com uma escolha!

*Crítico de arte, estudioso de direito, filosofia, sociologia e de psicanálise e professor de judô – [email protected]




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