Arte sacra, arte erótica

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Criado em 14 de Março de 2013 Cultura
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POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

 

Somos incompletos, seres faltantes, e nossa caminhada em direção ao que nos falta poderia se chamar amadurecimento, apropriação cultural ou aprendizagem. Aqueles de nós que se julgam superiores, que são plenos de si mesmos, entes narcísicos, vão estacionar em sua evolução, a não ser que a própria vida social os force a retornar à realidade.

A religião, assim como a arte, nasce da perplexidade do homem na natureza e se estabelece na sua incapacidade de alcançar certa estabilidade no universo das relações naturais e sociais. Começa então a busca pela felicidade no mundo, por razões que não estão nele, isto é, sobrenaturais. Arte e religião são irmanadas na imaginação do homem e apontam o que ele deseja, teme ou desconhece.

 

Muitas forças se organizam na sociedade através da história, algumas naturais, outras culturais, mas todas cumprem propósitos específicos, adaptando-se através do tempo. A sexualidade, tanto por sua função reprodutiva como por sua importância erótica e construtora das relações sociais, é uma delas. O pensamento religioso é outra força, e exerce grande pressão sobre a organização das relações eróticas. Sexo, religião e arte compartilham e disputam espaços importantes no imaginário coletivo.

Nós, brasileiros, por questões históricas e culturais, somos um país de cristãos. Se tivéssemos nascido no Oriente Médio – é claro, com exceções –, seríamos muçulmanos. Vale dizer que somos moldados pela cultura em que estamos e, àqueles que se insurgem contra os costumes dominantes, vão ser chamados de revolucionários, hereges, marginais, undergrounds, etc. É bem verdade que não somos gentis com eles. Nós os convertemos ou os excluímos, nem sempre vivos.

Nesta época em que marchas de cristãos arrastam milhões de pessoas no Brasil, em que as igrejas islâmicas são as que mais crescem no mundo e em que o romance erótico “Cinquenta Tons de Cinza”, da autora britânica Erika Leonard James, vende 31 milhões de exemplares apenas na língua inglesa, volto a uma questão que sempre me instigou: qual a relação entre a arte sagrada e a arte erótica?

Na capela Sistina, toda a nudez foi oculta depois que Michelangelo morreu. O Concílio de Trento baniu a nudez das obras de arte dizendo: “Toda superstição deverá ser removida. Toda lascividade deve ser evitada; de tal modo que as imagens não devem ser pintadas ou enfeitadas com referências à luxúria”.

Mas pintores da arte sacra como os venezianos Ticiano,Tintoretto, Veronese, sem falar no próprio Michelangelo, bem como Rubens e Raphael, foram consagrados por obras de magnífica eroticidade.

O antigo historiador romano Valerius Maximus registra como fato ético memorável a história da filha Pero, cujo pai, Cimon, foi preso e condenado à morte pela fome. Para salvar a vida do pai, Pero o amamenta durante as visitas, em imagem que foi imortalizada por diversos artistas, entre os quais Peter Paul Rubens, conforme mostramos a seguir.

Estou bem certo de que, se apresentasse essa imagem sem explicar a que se refere, nem mesmo seu valor de alguns milhões de dólares a salvaria da reprovação geral e que a sua rejeição aumentaria se explicasse que se tratava de uma filha amamentando um pai.

O que vale como objeto de reflexão é que, ainda que tão próximas em nosso imaginário, são capazes de iluminar nossa inspiração, sexualidade, religião e arte evoluam na cultura de forma tão conflituosa, que enquanto alguns tesouros deixam de ser produzidos, ou são destruídos, outros são feitos e protegidos clandestinamente, como se algo em nós precisasse falar mais, quanto mais esforço fosse feito para nos manter calados.

É lindo que os mesmos contingentes que se multiplicam nos cultos e caminhadas das diversas religiões, falando da dissolução dos costumes, leiam e se apaixonem por “Cinquenta Tons de Cinza”, que os artistas do sagrado sejam também os mestres do erotismo. Isto porque, como avisava Freud: “o recalcado sempre retorna”. Verdade, nossa sexualidade calada pode não se expressar sempre livremente, mas há de falar por lapsos, atos falhos, chistes, sonhos, sintomas e: obras de arte, belas obras de arte, sagradas e eróticas!


*Estudioso de psicanálise, crítico de arte e cultura e jurista

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