Concentração dentro de uma pílula

Cresce a cada dia o uso de medicamentos que 'prometem' aumentar o desempenho cognitivo, mas especialistas advertem que eles podem causar problemas futuros.

Criado em 12 de Outubro de 2016 Comportamento
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Sara Lira

A rotina de estresse, o acúmulo de trabalho e a cobrança por melhores resultados têm levado pessoas a usarem medicamentos para “potencializar” a atenção e o foco e ficar sem sono. Chamados por quem os usa de “pílulas da inteligência”, esses produtos, se forem usados sem recomendação e orientação médica, podem causar efeitos colaterais indesejáveis e danos em longo prazo.

Os principais consumidores são estudantes para concursos públicos ou vestibulares, pessoas com a intenção de permanecer despertas e atentas em momentos de maior sonolência ou cansaço e, até mesmo, quem deseja perder peso, já que esses remédios podem reduzir o apetite.

Na internet, não faltam textos e sites amadores incentivando o uso deles e informando sobre supostos benefícios. As “pílulas da inteligência” mais comuns, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), são a modafinil (o nome comercial mais comum é Stavigile) e o metilfenidato (a famosa Ritalina ou Concerta). O primeiro é indicado para o tratamento de narcolepsia (distúrbio do sono), e o segundo, para pacientes de todas as idades portadores do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Placebo

Essas substâncias agem no sistema nervoso central, como explica o psiquiatra e membro da Comissão de Estudos e Pesquisa de Saúde Mental da Mulher da ABP, Renan Boeira Rocha. “De modo geral, o mecanismo de ação de tais medicamentos está baseado no aumento da intensidade da ação do neurotransmissor dopamina em regiões específicas do cérebro, como o córtex pré-frontal”, diz ele.

O abuso desses remédios pode causar dependência. O usuário também está sujeito a ter manifestações de intoxicação e de abstinência, além de comportamentos de risco, como agitação psicomotora, e efeitos mais graves, como hipertensão arterial.

Segundo o especialista, não é comprovado cientificamente que tais medicamentos surtem o efeito desejado em pacientes que não sofrem de narcolepsia ou de TDAH. Um estudo divulgado pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade de São Paulo (USP) no mês de junho, por exemplo, mostrou que pacientes saudáveis não apresentaram melhoras cognitivas sob o efeito do metilfenidato.

A análise foi feita com 36 universitários, que tomaram doses de 10, 20 e 40 mg da substância e também de um placebo. Eles, sem seguida, passaram por testes de atenção e de memória. De acordo com os resultados do estudo, não foram observadas diferenças no desempenho dos indivíduos em nenhum dos testes. No entanto, os participantes relataram uma sensação de bem-estar, o que configura um efeito placebo.

A conclusão é que a impressão de melhora na concentração em pessoas saudáveis se deve justamente a esse efeito. “Podemos considerar que as pessoas que não apresentam as citadas doenças e, mesmo assim, usam tais medicamentos podem vir a perceber uma sensação de maior desempenho cognitivo provavelmente em função do chamado efeito placebo. Isso significa dizer que a percepção de melhora não teria relação com os efeitos da substância, mas com as expectativas da pessoa em relação à ação do remédio, o que poderia, por exemplo, aumentar o grau de confiança na execução da atividade, com o consequente melhor desempenho da ação”, explica Renan Boeira.

Sem medo

A concurseira Marina*, de 26 anos, usa o modafinil todos os dias para se manter mais focada nos estudos. Ela trabalha meio horário e, no restante do dia, fica por conta dos livros e dos cadernos. Marina começou a fazer uso do medicamento há cerca de seis meses, quando o conheceu por meio de outra amiga, que também o utiliza, e após pesquisas na internet. “Tomo meio comprimido de manhã e meio à noite. Percebo que fico mais concentrada e sem sono. Durante o efeito, consigo fazer algo sem distrair, e é possível ficar umas quatro horas lendo direto, sem cansar”, conta.

Ela não tem orientação médica para usar o remédio e diz que não sente nenhum efeito colateral indesejado, como insônia ou dores de cabeça. O meio pelo qual a estudante consegue as cartelas ela mantém em segredo. Mas ela conta que, no mercado negro, é fácil adquirir uma caixa do medicamento. De fato, ao se pesquisar na internet, é possível encontrar, sem muito esforço, sites que oferecem o produto.

A venda de medicamentos de tarja preta, que é controlada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sem retenção da receita é ilegal. Conforme informa a jovem, entre os concurseiros é extremamente comum o uso de remédios que visam potencializar a capacidade de concentração para a obtenção de melhores resultados nos estudos. “É regra geral. A maioria dos que conheço usa Ritalina, que deixa a pessoa mais elétrica. Com isso, ela não para de estudar e consegue render o dobro de estudo. Esse eu acho a Ritalina mais perigosa. Quanto ao Stavigile, não tenho medo”, diz.

*A estudante Marina pediu para não ser identificada.

 


 

O outro lado da moeda

Para quem realmente precisa desses medicamentos, o uso deles é parte importante do tratamento, como destaca o médico Renan Boeira. Segundo ele, do ponto de vista da medicina, especificamente sobre o metilfenidato, estima-se que, no Brasil, cerca de 16% dos indivíduos afetados pelo Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade utilizavam o medicamento no ano de 2010. É o caso do estudante de direito Guilherme Silva, 20 anos, diagnosticado com TDAH aos 11. Na época, ele chegou a usar Ritalina e parou um tempo depois. No entanto, no fim do último semestre, os comprimidos voltaram a fazer parte de sua rotina, sob a orientação de um neurologista, devido à desatenção na faculdade.

Por causa da dificuldade de concentração, para Guilherme ler um texto até o fim é um desafio, pois, facilmente, a distração aparece. É necessário voltar o parágrafo ou reler a frase para fixar bem o que está escrito. Com o uso do remédio, Guilherme não apresenta esses problemas. “O medicamento promove uma melhora em relação à atenção, ajuda a manter o foco na aula. Fazendo uso dele, fico bem ligado no que o professor fala, absorvendo melhor o conteúdo da matéria”, conta.

Na opinião do presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, esses pacientes, muitas vezes, sofrem com a descrença da sociedade nos sintomas do transtorno, preconceito que a entidade trabalha para quebrar. “Através de diversas iniciativas, a ABP também procura esclarecer toda a sociedade sobre os mitos e os fatos a respeito do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e sobre seu tratamento com medicamentos como o metilfenidato”, esclarece.




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