Corpo ao Extremo

BODY MODIFICATION

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Criado em 18 de Setembro de 2014 Capa

Além das cerca de 40 tatuagens, Ana tem um alargador, quatro piercings, quatro microdermais – piercing com apenas um ponto de entrada –, um implante de mão e o tongue split – bifurcação na ponta da língua que a torna semelhante à de répteis

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Pode parecer estranho e até bizarro, mas modificar radicalmente a aparência com tatuagens, piercing e implantes é uma tendência mundial que vem ganhando cada vez mais adeptos

Lisley Alvarenga e Pollyanna Miranda

CONSIDERADA ARTE e manifestação cultural para alguns e coisa de outro mundo para outros, a body modification, ou body mod, como também é conhecida, não é tão nova no Brasil. Contudo, a técnica e o rigor com que ela é realizada, nos dias atuais, só agora vêm se popularizando dia após dia. Mas quais os motivos de essas pessoas – grande parte delas com rotinas de vidas tão comuns quanto as nossas – transformarem sua aparência de forma tão diversificada?

Em seu estudo sobre o tema, no artigo “Os significados do corpo para as pesso­as adeptas das modificações corporais extremas”, apresentado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2010, Leonardo Loeck explica que no universo das body modifications o corpo se torna uma espécie de projeto. “Os sujeitos es­tudam quantas e quais modificações farão para ter um corpo ideal. Muitas pessoas não conseguem parar de modificar-se, então, sempre querem fazer mais uma tatuagem, colocar outro piercing. Desse modo, o corpo se torna um projeto sem fim”, garante ele.

Leonardo afirma ainda que, além de uma forma de arte, as modificações cor­porais expressam os sentimentos e as emoções dos seus praticantes. “É modi­ficando o corpo que as pessoas buscam diferenciar-se, tornar-se mais bonitas, construir identidades, pertencer a deter­minadas tribos urbanas, assumir uma pos­tura de resistência, expressar-se através da arte, comunicar-se e superar limites”, explica.

Adepta à prática, a modelo e body piercer Ana Bárbara Buhr Buldrini, 20, concorda. A betinense afirma que suas modificações corporais expressam a arte através do seu corpo. “Elas são uma for­ma de resistência, de eu saber até onde o meu corpo aguenta. Sempre gostei de modificações corporais. É uma coisa que me completa”, diz. Além das cerca de 40 tatuagens espalhadas pelo corpo, Ana tem um alargador, quatro piercings, quatro microdermais – piercing com apenas um ponto de entrada –, um implante de mão e o tongue split – um corte na ponta da língua que a torna semelhante à de rép­teis. “Essas modificações corporais reve­lam o que sou, minhas vontades, gostos, o jeito que eu vivo minha vida”, explica.

A modelo diz ainda que, apesar de estar se popularizando no país, a body mod ainda é vista com muito precon­ceito por grande parte das pessoas que, segundo ela, avaliam esse tipo de arte como extrema demais. “Elas ficam se perguntando por que fazemos isso, por que somos assim. Mas já não me importo mais com esse tipo de comentário. Cada um é um no mundo. Da mesma forma que não entendo o porquê de a pessoa tomar determinada decisão ou atitude, ela também pode não entender por que faço isso. Todos nós somos iguais, apenas temos formas de pensar diferentes”, re­força. Orgulhosa de sua filosofia de vida, Ana revela que não pensa em parar com as modificações corporais. “Tenho planos de tatuar meu corpo todo”, diz.

Outro praticante das body modifica­tions é o também body piercer Marcelo Vieira Salgado, 26. O belo-horizontino possui 60% do corpo tatuado, 37 piercin­gs, um big labret – alargador acima do queixo – de 10 milímetros, um big sep­tum – alargador entre as duas cavidades nasais – de 8 milímetros, alargadores de 60 milímetros nas orelhas, microdermais e o tongue split. “De certa forma, acre­dito que essas tatuagens denunciam um pouco da minha personalidade, das coisas de que gosto. O fato de eu ter feito todas elas demonstra que não me importo mui­to com a opinião das pessoas”, salienta o tatuador.

Apesar de não ter um motivo específi­co, ele conta que sempre apreciou tatua­gens. “Não sei quando foi exatamente que desenvolvi essa paixão, mas o fato é que hoje esse é um estilo de vida que escolhi seguir”, diz. Para ele, as modificações não fazem de ninguém uma pessoa diferente ou anormal. “Temos apenas uma aparên­cia diferente do que é considerado ‘nor­mal’ pela maioria das pessoas”, completa.

Assim como Ana, Marcelo diz que o preconceito contra esse tipo de filosofia de vida ainda é muito grande. “Muita gen­te tem dificuldade em aceitar a diferença do outro, mas tenho percebido que as tatuagens e os piercings já estão sendo mais aceitos, o que não acontece com as outras modificações corporais, que ainda não são bem-vistas pela sociedade. Às vezes, percebo o repúdio de algumas pessoas, mas não é nada que me atrapa­lhe”, garante. Satisfeito com seu estilo, ele também confidencia que pretende fazer mais modificações. “Quero fechar meu corpo todo com tatuagens, do pes­coço para baixo. Também pretendo fazer tatuagens no outro lado da cabeça e mais alguma no rosto, além de alguns implan­tes de mão”, finaliza.

Mesmo não se importando com as ma­nifestações de preconceito que sofre por causa de suas alterações no corpo, o body piercer Gabriel Joia, 19, diz que o proble­ma é quando a discriminação acontece no mercado de trabalho. “De certa forma, esse tipo de atitude incomoda, mas penso que isso é ignorância. Como a própria pa­lavra já diz, as pessoas não podem ter um pré-conceito daquilo que não conhecem. Elas têm de saber respeitar o que é dife­rente ou fora do normal para ela”, ponde­ra. Gabriel também diz se considerar uma pessoa normal. “Meu corpo é diferente, porque o modifiquei, mas qualquer pes­soa é capaz de fazer o mesmo. Minhas mo­dificações são formas de eu me enfeitar, me se sentir mais bonito, mais completo comigo mesmo”, explica.

A primeira alteração que ele fez no corpo, um piercing no nariz, foi há cinco anos, quando ele tinha apenas 14 anos. O motivo: a paixão pela banda Paramore. “Vi o baixista, Jeremy Dias, usando um e resolvi colocar também. Depois disso, não parei mais”, conta. Hoje, além das mais de 22 tatuagens espalhadas pelo corpo, ele tem seis piercings, um microdermal na testa, um microdermal no meio do lábio superior, conhecido como “medusa”, alargadores de 60 milímetros nos lóbulos das orelhas, bifurcação da língua, cinco implantes em formato de esferas em cada braço, uma escarificação – cicatriz feita na pele através de instrumentos cortantes – em forma de diamante na perna.

E, mesmo sendo adepto à body mod, ele confessa que algumas alterações che­gam a ser radicais até para ele. “Fazer uma bifurcação do pênis ou colocar alargadores grandes nas bochechas, são tão extremas que considero bizarras, mas, como acho o bizarro incrível, não vejo problema ne­nhum nisso. Ao contrário do que muitas pessoas julgam, não considero meu estilo de vida fútil. Cada um faz com seu corpo o que quiser. O gancho que tenho no rosto, por exemplo, representa o quanto gosto da arte da suspensão corporal. Já as tatu­agens de personagens de filme de terror que fiz mostram que gosto de coisas mais bizarras”. “Adoro modificações corporais e pretendo fazer mais”, completa.

O garçom Rafael Moreira, 28, tam­bém é um praticante da body mod. Sua primeira alteração no corpo foi um pier­cing na língua, aos 15 anos. “Na época, eu queria ter feito mais, mas, como era reprimido pela minha família, desisti da ideia. O piercing na língua foi mais fácil de eu esconder dos meus pais”, brinca. Mesmo com a família sendo contrária ao seu estilo, o belo-horizontino continuou as mudanças pelo corpo e, além de 47 tatuagens que possui hoje, já fez outras modificações, como colocar outros pier­cings, microdermais, implantes subder­mais, tongue split, big septum e outros alargadores. “Os que eu tinha nas ore­lhas, acabei revertendo, por vontade dos meus pais. Mas me arrependo muito de ter feito isso”, lamenta.

No seu caso, a preocupação com es­tética foi, inicialmente, o que o influen­ciou a se tornar um adepto das body modifications. “Depois, fui agregando valores. Hoje, transformo o meu corpo numa ‘história’, onde expresso minha vida através da arte. Considero essas mudanças uma forma de liberdade de expressão. Marco os momentos e as fa­ses da minha vida no meu próprio cor­po”, explica.

Segundo a psicóloga Cleuza Prata, um dos principais objetivos das pessoas, ao modificar extremamente o corpo, é construir uma identidade, que é criada com base nas diferenças em relação aos demais indivíduos. “Outros objetivos são sentir-se mais bonito, contar histó­rias de suas vidas, expressar-se através da arte, comunicar-se, superar limites e representar um ritual de passagem.” Para a especialista, o corpo é um reflexo da nossa imagem. “Não podemos pensar nele como algo estritamente biológico. Ele transcende esse aspecto, pois está inserido em uma sociedade e faz parte da cultura dela, carregando também significados diferentes. Alterar o corpo transforma o modo utilizado para essas pessoas para construir e representar o eu”, completa.

A estética e a paixão pela contra­cultura, como o heavy metal, o movi­mento punk e o hardcore, motivaram, inicialmente, o produtor de eventos e modificador corporal Marcos Nogueira, ou Marcos Cabelo, 25, como é mais co­nhecido, a fazer sua primeira alteração no corpo com apenas 12 anos: um pier­cing. “Depois disso, não parei mais”, diz. Hoje, o também empresário no ramo ali­mentício, além das mais de 40 tatuagens, fez outras dezenas de modificações cor­porais, sendo as mais curiosas oito bar­ras de teflon (implantes) e um alargador de 12 milímetros no pênis. “Eles não me incomodam, ao contrário, aumentam o meu prazer sexual”, garante. 

Marcos possui ainda alargadores de 65 milímetros nas orelhas, de 10 milíme­tros no nariz e de 16 mm no septo nasal. “Tenho também um labret (alargador de lábio) de 14 milímetros, língua bifurcada, duas estrelas implantadas no peito, im­plantes nas duas mãos e um alargador de 6 milímetros no umbigo”, conta o modi­ficador, que, em outubro, fará mais uma mudança no corpo. “Farei um punch, a remoção da cartilagem de uma parte das duas orelhas em forma de coração.”

RISCOS À SAÚDE

Mesmo sendo considerada uma forma de arte e de expressão, as modificações corporais “são vistas por muitas pesso­as, principalmente pelos profissionais da área de medicina, como uma forma de agressão ao corpo, pois apresentam alguns riscos à saúde”, explica Leonardo Loeck, em seu estudo sobre o tema. A dermatologista Monalisy Rodrigues con­corda. Segundo ela, colocar piercings, um dos tipos de modificações nos corpo con­siderado mais simples, é uma agressão ao organismo. “Trata-se de corpos estranhos que serão introduzidos diretamente na pele. Assim como um brinco, a pessoa corre o risco de ter infecção, vírus e até fungos”, explica.

Ainda conforme ela, caso não haja es­terilização adequada dos materiais usados no procedimento, existe ainda a possibili­dade de a pessoa se contaminar com do­enças mais graves, como hepatite C e até HIV. “Técnicas inadequadas e/ou alergia ao tipo de material usado para confecção do objeto podem ocasionar dermatite de contato e cicatrizes e, quanto maior o nú­mero desses ‘enfeites’ pelo corpo, maior o risco de patologias.”

Por isso, a dermatologista aconselha a pessoa interessada em fazer qualquer modificação corporal a ter cautela e sem­pre buscar um bom profissional. “O local deve ser limpo, fiscalizado e liberado pela vigilância sanitária. O uso de materiais descartáveis, como agulhas, é obrigató­rio. No caso das tatuagens, por exemplo, esses cuidados são necessários porque durante o procedimento há uma des­truição da pele e sangramento, gerando riscos de contaminação por microrganis­mos, como vírus, e risco de cicatrização com surgimento de hipertróficas e queloides.” 

Você sabia?

No Brasil, o modificado mais célebre, já falecido, foi Felipe Klein, filho do ministro dos Transportes do governo Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 1996, Odacir Klein. Ele tinha chifres de teflon na testa, argolas nos genitais e nos mamilos, além da língua bifurcada.

DA DOR AO TRANSE

Outra prática considerada assustadora para maioria das pessoas e da qual Ana Buldrini, Gabriel Joia e Marcos Cabelo também são adeptos é a suspensão cor­poral. Apesar de, tecnicamente, não ser uma body modification, a prática, utilizada há muito anos e que, em algumas tribos indígenas mais antigas, era associada a ri­tuais religiosos, consiste, basicamente, em suspender o corpo por meio de ganchos metálicos inseridos na pele.

“Descobri essa prática através da body art, mas também assistia a muitos vídeos no Youtube antes de começar a praticar. A vontade de saber a sensação de ter o corpo içado por ganchos me motivou a aderir. Já pratico suspensão há quase dois anos”, conta Ana. De lá para cá, já foram 14 no total. “Quando pratico, quero sentir adrenalina, força de vontade. Tenho a sen­sação de que, quando descer, tudo vai ficar melhor, que vou crescer, conquistar algo, como se fosse uma energia que faz mudar as coisas”.

A “suicide”, isto é, a primeira vez em que Ana teve o corpo suspenso, foi em 2012. No total, a performance durou, aproximadamente, 30 minutos. “Eu me senti vencendo mais um obstáculo e uma paz muito grande”, explica. E se vocês pensam que ela sentiu muita dor, enganam-se. “Particularmente, a perfura­ção é que é mais agressiva. Quando se está com os ganchos e na vibe de subir, seu corpo produz um tipo de anestésico natural por causa da adrenalina. Aí, é só curtir”, salienta.

Gabriel também descobriu a prática pela internet. “Vi um vídeo no Youtube e achei aquilo incrível e bizarro. A primeira vez que fiz a suspensão foi no mesmo dia e local que a Ana fez. Na época, coloquei dois ganchos nas costas e fiquei suspenso por cerca de 20 minutos. Depois disso, pratiquei a suspensão por mais sete vezes.” E, ao contrário de Ana, ele diz que durante o procedimento a pessoa sente um pouco de dor. “No momento em que saímos do chão, sentimos a pele puxando e descolan­do e, junto, vem a dor. Mas, se você estiver relaxado e tranquilo, poucos segundos de­pois aquilo se torna praticamente indolor. Daí, é só aproveitar”, brinca.

Já Marcos fez a primeira suspensão há 17 anos, no Rio de Janeiro, ao assistir a alguns amigos praticar a técnica. “Sem­pre tive vontade de fazer e, nesse dia, re­solvi arriscar. Suspendi meus joelhos por 45 minutos e, de lá para cá, busco fazer uma suspensão mais pesada que a outra. É uma forma de conseguir me superar”, explica.

UM POUCO DA HISTÓRIA

As modificações corporais surgiram há anos. A suspensão corporal, por exemplo, foi criada na Índia; a arte de tatuar, na Oceania; as perfurações, na Ásia; e escarificações, na África. Tais costumes tribais foram descobertos por marinheiros europeus no século XVI. Nos anos 60, a tatuagem ganhou espa­ço na cultura oriental e passou a ser mais popular. As perfurações, como os piercings, só nasceram 10 anos depois, trazidas pelos punks. Nos anos 90, as body modifications passaram por várias fases consideradas extremas, em modalidades já conhecidas, como a castração, o alargamento anal, a anulação feminina – tampar a vagina com enxertos de pele de forma que a mulher só a use para urinar –, a bifurcação peniana, entre outras modificações./ Fonte: site “Identidade Própria” 




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