Dentes nô valgina

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 19 de Setembro de 2013 Cultura
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Krig-ha! Domingos, bandolo, mata! Saltei de banda imediatamente, levando comigo meus 95 quilos distribuídos, de forma quase barroca, por 1,70 metro de altura. Estava ali o inimigo primal, não meu, mas de todos aqueles a quem a cultura, vá lá, de forma politicamente incorreta, designou de machos. Meus joelhos tremiam, tinha câimbras em todos os músculos, e minha nuca se arrepiava vendo a criatura diante de mim.
 
Tudo começou com um velho hábito. Compartilho no Facebook imagens de pintores e de músicas que aprecio. Faço isso de forma aleatória, à medida que vou tomando contato com os artistas e acho conveniente apresentá-los aos meus amigos, que têm maior ou menor interesse pela arte. Não sou necessariamente um polemista ao divulgar os trabalhos, mas procuro certos contrastes, para manter a magia do estranhamento .
 
Entre clássicos, surrealistas, barrocos, rococós, figurativos, realistas, hiper-realistas, conheci o polêmico trabalho da artista plástica Laurie Lipton. Os ingredientes estavam ali, o inusitado, o bizarro, o grotesco e o traçado preciso da desenhista e da pintora de gênio. Não sei por que aquilo me lembrava um pouco dos seriados que me assustavam na década de 1970: “Enigma: Uma Jornada ao Desconhecido”, “Além da Imaginação” e “Quinta Dimensão”. Memórias perdidas em meu “baú de ossos”.
 
Copiei as imagens em uma pasta e, sem me deter muito, passei a compartilhá-las no Face – sempre com prévia resenha sobre a autora, que repito parcialmente no cabeçalho das imagens. Confesso que antegozava o impacto que teria em meus seguidores, ávidos de realistas, clássicos, figurativos e impressionistas. E esperava alguns xingamentos e reclamos, que sempre curti paciente, em nome de certo empirismo, que considero parte da formação do gosto pela arte. Por boa parte da noite compartilhei, displicente, aquelas imagens.
 
No outro dia, de manhã, cessado o efeito do coquetel de oxcarbazepina, fumarato de quetiapina e divalproato de sódio, que uso para combater minhas memórias e minhas responsabilidades, corri para o computador, já com a proposta de apresentar um novo pintor. Abri minha página no Face, e ali estava ela: krih-ah!
 
A imagem era terrível! A síntese de todo o mal! A imagem maldita! Com o aviso da equipe do Facebook, não só de que ela havia sido retirada, banida, quem sabe para as profundezas do inferno, mas que, para mim, havia a determinação do silêncio por um dia, não do silêncio obsequioso com o qual o Vaticano puniu Leonardo Boff, mas o mutismo total, proibido até de desejar feliz aniversário ou curtir a publicação de amigos.
 
Obra da artista plástica Laurie Lipton, conhecida por suas criações de realismo grotesco/ Reprodução da Internet
 
Era claro que eu entendia. Como não havia percebido? Os remédios, sim, minha atenção diluída. Entendam, ali, com os olhos cobertos, para esconder sabe-se lá o quê (talvez o mal mais terrível), aquela mulher balzaquiana, nua, com dentes terríveis – dentes na vagina! Neste mundo de pintores maravilhosos, corpos femininos cuidadosamente desenhados por um imaginário masculino, aquela figura era uma profanação, um ato antierótico.
 
Aquilo era mesmo horrível, pior do que Cronos decepando os pudores de Urano com uma foice, a música amaciada de um coro de “castratis”, ou meu psicanalista insinuando que eu vivia o terror da castração e, por medo de perder meu pênis, teria de renunciar à minha mãe (pela qual, juro, papai, nunca senti desejo algum).
 
Comecei a delirar de novo. Será isso? – um mundo de vaginas dentuças desfilando enquanto os Beatles e o Pink Floyd tocavam uma complexa mixagem de “Yellow Submarine” e “The Wall”. Freud insistindo que eu só me situaria em minha ordem simbólica se reconhecesse que não podia comer a minha mãe. – Mas eu já não disse que nunca quis transar com a minha mãe! – Deve ser por isso que meu pai era tão bravo .
 
Reconheci o meu crime e a minha pena. Sentia-me como Rodion Românovitch Raskólnikov, tropeçando, nas páginas “dostoievskianas” de “Crime e Castigo”. Como podia não ter percebido que compartilhara com o mundo as imagens de uma mulher com dentes na vagina? Tanatos me assombrava, o anteros, qualquer punição parecia pequena.
 
Mas havia o outro sentimento, mais primitivo, longínquo, poderoso, o imperioso instinto de sobrevivência, afinal, como Leminski, sou um professor de judô. – Krig - ah, Domingos bandolo mata! Fora Freud, Dostoiéviski, Beattles, Pink Floyd! Deixem minha cabeça em paz! Apaguei a imagem dos meus arquivos com um único toque – Krig - ah! – Domingos bandolo!
 
Para arrematar o dia – celebrar a vitória sobre o terror (essa, sim, verdadeira) – coloquei meu judogui, faixa-preta na cintura, e fui para a academia treinar. Entrei – olhar selvagem como o da criatura de Edgar Rice Burroughs –, quando meu mestre japonês me olhou assustado e disse: – Oh Dômingo! Por que coloca imagem com dentes nô valgina?
 
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].

 




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