Heróis da vida real

Lições de vida

0
Criado em 25 de Março de 2014 Capa
A- A A+

Histórias de pessoas com algum tipo de necessidade especial que, apesar das “limitações”, venceram as adversidades, foram à luta e deram um novo rumo para suas vidas

Lisley Alvarenga

Quando deixou a pequena cidade de Nanuque, no interior de Minas, para morar em Betim, a secretária Luciana de Jesus Dias Maria, 31, não imaginava que se tornaria uma das referências no esporte paraolímpico brasileiro. Deficiente visual do olho esquerdo desde os 12 anos, ela acabou perdendo também a visão do olho direito, seis anos depois, em função de uma suposta negligência médica. E, ao contrário do que muitas pessoas possam pensar, revolta e indignação não foram os sentimentos nutridos por ela em razão do acontecido. “Nunca tive raiva de ninguém. Mas confesso que, inicialmente, fiquei arrasada. Lembro que eu fazia acompanhamento médico, pois tinha uma miopia muito alta, e, com isso, acabei desenvolvendo glaucoma, catarata e tive descolamento de retina. Porém, mesmo nessa situação, não consegui a autorização na unidade de saúde em que recebia acompanhamento médico para ser transferida para me tratar em Belo Horizonte. Depois que perdi totalmente a visão, quis morrer. Pensava que não conseguiria viver sem enxergar”, confessa emocionada.

O esporte me ajudou a superar a deficiência e até a timidez. Fez-me ver o mundo de forma diferente. A deficiência não é um empecilho para a pessoa vencer na vida e alcançar seus objetivos. Hoje sei que, se me dedicar, posso conseguir tudo o que quiser.

Mas Luciana foi à luta. Aprendeu a ler e escrever em braille e começou a praticar, em 2002, judô e atletismo pelo programa municipal Viva o Esporte. A paixão pelo salto em distância, modalidade com a qual se consagrou nacionalmente, só veio anos depois. Em 2012, a atleta foi campeã brasileira no salto em distância e levou o quarto lugar nos 100 metros rasos. Um ano depois, seu talento a levou a conquistar a melhor marca da carreira: ficou em segundo lugar no salto em distância e foi pré-convocada para seleção brasileira de atletismo paraolímpico – todos os resultados obtidos no Circuito Loterias Caixa Brasil Paraolímpico. Já naquele ano, na etapa regional da mesma competição, ela conquistou o primeiro lugar no salto em distância e o segundo lugar nos 100 e 400 metros.

Tantos troféus fizeram com que essa vitoriosa atleta adquirisse o direito de receber o Bolsa-Atleta, um programa de incentivo financeiro do governo federal que dá suporte à formação de gerações de atletas com potencial para representar o país nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. Orgulhosa com seus resultados, Luciana diz que foi com o esporte que ela descobriu que nada é impossível para qualquer ser humano. “O esporte me ajudou a superar a deficiência e até a timidez. Fez-me ver o mundo de forma diferente. A deficiência não é um empecilho para a pessoa vencer na vida e alcançar seus objetivos. Hoje sei que, se me dedicar, posso conseguir tudo o que quiser. Mas, para chegar aonde cheguei, tive de batalhar muito. Treinar em um projeto social, bancado com dinheiro público, nem sempre são flores. Às vezes, falta estrutura física até para treinar. Contudo, mesmo com todos os obstáculos, ainda conseguimos uma boa posição”, diz. “A melhor forma de superar a deficiência é aceitar sua condição e lutar com todas as forças pelos seus sonhos”, revela a atleta, ao salientar que, agora, seu maior desejo é entrar para a seleção brasileira paraolímpica. “Tenho certeza de que vou realizar esse sonho. Estou treinando para isso”, finaliza.

 

Um novo começo

Aos 24 anos, o economista Felipe José de Sá, hoje, com 34, viu sua vida ser totalmente transformada por causa de um acidente doméstico. Na ocasião, muito alcoolizado e sem as noções mínimas de espaço e de profundidade, ele, que havia passado um dia de confraternização com os amigos na casa da cunhada, resolveu se refrescar na piscina onde ele e sua esposa, Aline Mara Ribeiro Sá, 32, moravam. O resultado foi trágico: tetraplegia. “Pulei de ponta na água e, como a piscina é muito rasa, bati com a cabeça no fundo. Na hora, quebrei a sétima vértebra da coluna cervical e todos os movimentos do meu corpo, abaixo do tronco, ficaram comprometidos.

Por sorte, minha esposa estava na água. Foi ela quem me tirou da piscina e quem pediu socorro”, recorda.

Em vez de ficar lamentando a própria sorte, o betinense, casado há 11 anos e pai da pequena Maria Eduarda, 10, resolveu ser um exemplo de superação para outras pessoas. “O acidente me fez repensar a vida. Passei a dar valor às coisas mais simples e a enxergar o mundo com um novo olhar. Nem todo problema é o fim de tudo. Às vezes, ele pode ser, sim, o recomeço”, afirma.

Pulei de ponta na água e, como a piscina é muito rasa, bati com a cabeça no fundo. Na hora, quebrei a sétima vértebra da coluna cervical e todos os movimentos do meu corpo, abaixo do tronco, ficaram comprometidos.

Com o passar do tempo, Felipe acabou retomando os movimentos dos braços e, mesmo tendo sequelas nas duas mãos, não deixou que os obstáculos sofridos o limitassem a seguir uma vida normal. Com muita luta e dedicação, ele desenvolveu sua coordenação motora, o que lhe possibilitou escrever, dirigir e até participar de disputas estaduais de pingue-pongue. “Cheguei a competir no Campeonato Mineiro Paraolímpico, em 2008, e a conquistar uma medalha de bronze. Porém, como não tive apoio financeiro na época, acabei desistindo de continuar. Mas, se eu conseguir patrocínio, volto a competir”, salienta.

E não parou por aí. Em meio às aulas de musculação e de natação que faz, três vezes por semana, e à dedicação diária aos estudos para tentar uma vaga em um concurso público, ele ainda encontra tempo e disposição para fazer palestras motivacionais sobre a inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, em empresas de todo o país. “É só me chamar que eu vou”, brinca.

Sempre alegre e bem-humorado, o economista tem orgulho de dizer que hoje é um homem muito mais feliz e completo do que antes. “Nunca me deixo abater. Penso que ter dinheiro e, com isso, poder proporcionar conforto para a nossa família é sempre bom, mas tenho convicção de que tudo o que é realmente essencial para a vida de um ser humano eu tenho: fé em Deus, uma família unida e uma saúde plena”, conta o betinense. “Depois do acidente, até a relação sexual e afetiva com a minha esposa melhorou”, brinca.

A fé que salva

É difícil não se emocionar com a história de vida e de superação do vereador Joaquim Pereira, 58, um homem que nasceu de novo após ter sofrido um grave acidente em sua própria casa. Era dia 31 de maio de 2005, e Bracinho, como é carinhosamente conhecido em Betim, trabalhava na construção da sua casa, no bairro Universal, quando, por descuido, o rapaz que o ajudava deixou um arame encostar na rede elétrica de alta tensão que passava pela rua. O resultado foi devastador. Ambos tiveram de ser socorridos às pressas

para o Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte. “Infelizmente, esse rapaz não sobreviveu. Já eu tive queimaduras de terceiro grau e quase 50% do meu corpo queimado. No momento do choque, meu peito também se rompeu, queimei parte dos ossos do crânio e fiquei com as pernas atrofiadas. Os médicos não acreditavam na minha recuperação. Cogitavam até desligar os aparelhos. Minha família é que não deixou”, conta.

Depois de 90 dias em coma, ele abriu os olhos. Para Pereira, foi como nascer de novo. “Mesmo assim, os médicos não acreditavam que eu iria me recuperar. Diziam que eu ficaria em estado vegetativo e que não conseguiria mais falar. Mas minha vontade de viver foi maior. Duas horas depois de tirar o aparelho de traqueostomia, eu já balbuciava as primeiras palavras e, com seis meses de fisioterapia, dava meus primeiros passos. No momento que acordei, tinha a certeza de que Deus havia restaurado minha vida, me dado uma nova chance”, afirma.

No entanto, apesar de tanta força e fé em Deus, ele confessa que passou por muitos momentos de dor e revolta. O pior deles aconteceu logo depois que ele voltou do coma. Ao abrir os olhos, Pereira percebeu que não tinha mais seus dois braços. “Eles tiveram de ser amputados por causa das queimaduras. Foi um choque para mim. Achava que não poderia viver sem eles. Fiquei traumatizado durante cerca de um ano. Pensava que minha vida tinha acabado. Até questionava a Deus por que ele tinha feito aquilo comigo”, desabafa.

Os médicos não acreditavam que eu iria me recuperar. Diziam que eu ficaria em estado vegetativo e que não conseguiria mais falar. Mas minha vontade de viver foi maior. Duas horas depois de tirar o aparelho de traqueostomia, eu já balbuciava as primeiras palavras e, com seis meses de fisioterapia, dava meus primeiros passos.

A decisão de continuar a viver e de buscar a felicidade aconteceu quando ele estava no fundo do poço. Pereira lembra que estava em casa, chorando muito, quando recebeu a visita inesperada de um rapaz. “Ele me perguntou: ‘Irmãozinho, porque você está chorando?’.

Eu respondi: ‘Nunca roubei, matei, nem desejei mal a alguém, porque Deus fez isso comigo?’. Foi quando ele me respondeu: ‘Irmão, o que Jesus fez para ser crucificado? Você é melhor do que ele? Deus precisa de você assim para resgatar algumas vidas’. Foi como um banho de água fria. Naquele instante, percebi o quanto eu estava sendo egoísta com Deus”, confessa Pereira.

A partir daí, a vida dele mudou. Pereira passou a dar palestras em empresas e a dar testemunhos em igrejas de todas as religiões. Com o tempo, suas habilidades também foram desenvolvidas e, hoje, ele consegue fazer coisas do dia a dia que para nós são simples, mas que, para ele, foram grandes conquistas. “Troco de canal na televisão, consigo atender e fazer uma ligação telefônica e, com uma adaptação no carro, até dirijo. Já viajei, inclusive, duas vezes para Vitória com a minha esposa. O resto que não consigo fazer, minha esposa, que é minha joia rara, meu diamante, me ajuda”, brinca.

Hoje, nove anos após o acidente, ele se diz um homem abençoado. “Só tenho a agradecer a Deus a cada segundo por ele ter devolvido a minha vida e me abençoado com tantas graças. Às vezes, penso até que não mereço tanto. Digo sempre que o melhor remédio para superar um trauma como esse é se agarrar em Jesus. Ele nunca nos dá um fardo tão pesado que não possamos carregar”, afirma. Pereira, que já trabalhou como gari, ambulante, comerciante e até metalúrgico, diz que foi após o acidente que ele alcançou um dos seus grandes sonhos: entrar para a política. “Hoje, como vereador, busco ajudar toda a população e, principalmente, os menos favorecidos, como os deficientes e idosos”, finaliza.

Talento reconhecido

Mesmo detentor de uma catarata congênita, desde que nasceu, e com dificuldades para se locomover por causa de uma displasia, o atleta paraolímpico José Carlos de Souza, 36, não para de elencar as vitórias conquistadas ao longo de sua vida. Em 2011, ele ganhou o segundo lugar nas provas de arremesso de peso do Circuito Loterias Caixa Brasil Paraolímpico. No mesmo ano, levou a terceira posição na disputa de 100 metros da competição e, um ano depois, ficou em terceiro lugar nas provas de arremesso do circuito. Seus bons resultados lhe garantiram o direito de ser contemplado, assim como a betinense Luciana, no programa Bolsa-Atleta.

Para chegar a esse patamar, trilhou uma trajetória nada fácil. “Sempre me senti frustrado por ter dois tipos de deficiência. Até hoje, à vezes me bate uma tristeza, principalmente, pelo preconceito que as pessoas têm por causa dessas limitações. Hoje, consigo fazer praticamente tudo sozinho. Já até viajei para outros Estados. Mas nem sempre foi assim. Até 2003, eu não saía de casa. Dependia da minha mãe para tudo. Tinha medo de andar na rua e vergonha dos outros.” Segundo Souza, o pontapé inicial para mudança de vida só veio quando ele conheceu outras pessoas com deficiência, no Centro de Referência e Apoio à Educação Inclusiva (Craei), em Betim. “Percebi, com isso, que poderia superar minha deficiência e ter uma vida diferente. Voltei a estudar, formei-me no ensino médio e até consegui passar em um concurso público”, conta.

Para conseguir superar a deficiência, o melhor remédio é buscar informação. É preciso conhecer outras pessoas que passam pelo mesmo tipo de situação, começar a praticar um tipo de esporte. Tudo isso nos ajuda a superar e a vencer as dificuldades.

Mas foi no esporte que o servidor público encontrou um recomeço para sua vida. “Depois que entrei para o programa Viva o Esporte, mudei minha forma de enxergar a vida. Parei de ter vergonha de mim e até melhorei minha relação com as outras pessoas. Hoje me sinto um vencedor. A partir do momento que acreditei que eu era capaz, tive várias conquistas. É gratificante perceber a minha evolução.

Hoje acredito no meu potencial.” Souza aconselha as outras pessoas que passam pelo mesmo tipo de problema: “Para conseguir superar a deficiência, o melhor remédio é buscar informação. É preciso conhecer outras pessoas que passam pelo mesmo tipo de situação, começar a praticar um tipo de esporte. Tudo isso nos ajuda a superar e a vencer as dificuldades”, finaliza.

Astral que contagia

Uma pessoa extremamente positiva e alto-astral. Assim podemos definir a personalidade da bordadeira e vendedora ambulante Vilma Alves de Sousa, 47. Paraplégica desde os 23 anos, ela perdeu os movimentos das pernas em razão de uma infecção generalizada, após o parto do seu único filho. “Essa infecção afetou o líquido da minha médula óssea. Cheguei a ir ao médico várias vezes, mas eles não conseguiram combatê-la. Com isso, fiquei paraplégica. Naquele momento me considerei morta para a vida. Achei que tudo para mim tinha acabado”, recorda.

Mas Vilma não é uma pessoa que se deixa abater. Mesmo com as dificuldades, deu a volta por cima e correu atrás de seus objetivos. “Não nasci para sofrer. Confesso que sofri com tudo o que aconteceu, mas dei a volta por cima, afinal, tinha duas vidas para cuidar: a minha e a do meu filho. Não tive tempo de pensar em revolta ou depressão. Quando você está à mercê de perder a sua vida, não tem tempo para sofrimento”, afirma.

Nós, deficientes, temos problemas como qualquer um. Preconceito existe, sim, mas o que não podemos é nos deixar abater. Nunca me coloquei na condição de vítima. Não sou uma pessoa assim. Temos de enfrentar a vida de cabeça erguida e agradecer a Deus por cada dia que estamos vivos e por tudo o que temos.

Na época, Vilma atuava como vendedora em uma rede varejista em Betim, mas as dificuldades para se locomover até o local de trabalho fizeram com que ela abrisse mão do seu emprego e usasse seu talento de outra forma. “Passei a vender bijuterias e produtos cosméticos em casa. Também aprimorei meus dotes como bordadeira”, conta. E esse trabalho desenvolvido por ela lhe rendeu bons frutos.Vilma hoje é reconhecida pelas principais grifes de Belo Horizonte, o que fez com que marcas como Patrícia Nascimento, Ricardo Vasconcelos e Vanessa Nunes a contratassem.

Orgulhosa de suas conquistas e, principalmente, da sua independência, Vilma diz que, apesar das dificuldades enfrentadas em seu dia a dia, é preciso ter garra e não se sentir uma pessoa vitimizada. “Nós, deficientes, temos problemas como qualquer um. Preconceito existe, sim, mas o que não podemos é nos deixar abater. Nunca me coloquei na condição de vítima. Não sou uma pessoa assim. Temos de enfrentar a vida de cabeça erguida e agradecer a Deus por cada dia que estamos vivos e por tudo o que temos”, salienta.

Fotos:Deivisson Fernandes e Muller Miranda




AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.