Mais do que “melhores amigos”

Cães-guia resgatam a qualidade de vida de pessoas que perderam a visão e permitem que elas sejam autossuficientes.

Criado em 18 de Dezembro de 2017 Capa

A advogada Thays Martinez fundou em São Paulo, em 2002, o Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris), um dos pioneiros no Brasil em treinamento de cães-guia

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Cães-guia resgatam a qualidade de vida de pessoas que perderam a visão e permitem que elas sejam autossuficientes. Número de animais e de instituições qualificadas para treiná-los, no entanto, não corresponde à demanda no Brasil, que contabiliza 6,5 milhões de deficientes visuais

Iêva Tatiana

Seguramente, você já viu na televisão um cão-guia acompanhando um cego pela rua, mas é pouco provável que tenha testemunhado essa cena ao vivo, sobretudo na região metropolitana de Belo Horizonte. De fato, eles são muito raros por aqui. De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país possui aproximadamente 6,5 milhões de deficientes visuais: 582 mil cegos e outros 6 milhões com baixa visão. O número de cães-guia em atividade, no entanto, é de pouco mais de 200 (a maioria vinda de outros países), segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH) – a pasta, porém, reconhece que não há exatidão nesse dado, estimado por meio de consultoria técnica.

As instituições responsáveis pelo treinamento dos animais também não são muitas no Brasil – e aqui há outra ausência de estatísticas oficiais. Ainda de acordo com o MDH, elas estão “espalhadas” por Brasília, Espírito Santo, Santa Catarina e São Paulo. O Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris), na capital paulista, foi um dos pioneiros, fundado em 2002, pela advogada Thays Martinez. A história da instituição coincide, não por acaso, com a da criação da Lei Federal 11.126/2005, conhecida como “Lei do Cão-Guia”, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Tudo começou quando Thays tentou embarcar no metrô de São Paulo com um cão-guia, o labrador amarelo Boris, mas foi impedida de fazê-lo. Ela, então, ajuizou uma ação, que acabou resultando, em um primeiro momento, na aprovação da Lei Estadual 10.784/2001, de autoria do deputado Walter Feldman (PSB), que “garante o acesso de cães-guia a qualquer meio de transporte e estabelecimento público ou particular, inclusive restaurantes, casas de espetáculo, institutos educacionais e condomínios”. A medida é válida não apenas para deficientes visuais, mas também para “treinadores e instrutores durante a fase de treinamento dos cães e para as famílias de acolhimento no período de socialização”.

Depois de travar uma briga que se estendeu por seis anos, a advogada conseguiu ainda a ratificação da legislação nacional. “Vimos que era necessário termos leis mais específicas, e foi a partir daí que fundamos o Iris. Acho que este foi nosso trabalho mais importante: criar um alicerce que atende a todos”, diz Thays.

História

Em 15 anos, o instituto paulista já entregou cerca de 40 cães, alguns nascidos e treinados no Brasil e outros trazidos de uma instituição parceira, a Leader Dogs for the Blind, sediada em Michigan, nos Estados Unidos. Foi de lá que veio Boris, o primeiro cão-guia da fundadora do Iris, em 2000. “Costumo dividir minha vida em AB (antes de Boris) e DB (depois de Boris). Foi algo incrível, não só na questão técnica, pois com ele eu andava com mais velocidade – com a bengala, não me sentia segura para isso, principalmente por causa dos obstáculos aéreos, que ela não identifica. Ganhei uma liberdade muito grande, que me trouxe mudanças em cascata: mais qualidade de vida, autoestima e confiança. Tive mais disposição, criei o Iris, mudei de emprego e fui morar sozinha”, elenca a advogada.

Boris faleceu em 2009, aos 11 anos. Antes disso, logo que ele se “aposentou” da função e tornou-se um animal de estimação, o labrador preto Diesel, de 10 anos, assumiu a tarefa de guiar Thays. Mas, em 1º de dezembro último, o segundo cão-guia dela também atingiu a idade de aposentadoria, e, no mesmo dia, ela embarcou para a América do Norte com o objetivo de trazer um novo companheiro de caminhada. Diesel, de agora em diante, será um pet comum.


A condução do guia

Se o total de cães-guia e de instituições de treinamento não é expressivo no Brasil, o cenário não seria diferente em relação aos adestradores. George Thomaz Harrison exerce essa função há mais de uma década e chegou a coordenar uma iniciativa própria – o projeto Cão-Guia Brasil – no Rio de Janeiro. De 2006 para cá, ele treinou diretamente 18 animais e participou da formação de outros 30. Hoje, George trabalha no Instituto Magnus, em Sorocaba, no interior de São Paulo. Segundo ele, os profissionais devidamente qualificados para essa tarefa não somam dez em todo o país atualmente.

Seguindo na direção contrária, a demanda por cachorros é crescente. Somente no Iris, 3.000 pessoas aguardam na fila, e o número se repete em outras escolas de formação de cães-guia. “Acreditamos que os mesmos candidatos se inscrevem em vários institutos na esperança de conseguirem um animal”, avalia Thays Martinez.

Diante de números tão contrastantes, treinar os cães tem sido um desafio para os profissionais que se dedicam a essa atividade. O processo completo dura, em média, dois anos. “A gente começa com a seleção dos pais e dos filhotes com mais chances de se tornarem cães-guia, conforme as características físicas e sociais. Depois, cuidamos da escolha das famílias que vão fazer a socialização”, explica Harrison.

 

George Harrison é um dos poucos adestradores de cão-guia no país; ele atua no Instituto Magnus, em São Paulo; na foto, o especialista em treinamento nos Estados Unidos

Nessa etapa, voluntários recebem os animais em casa e, durante o primeiro ano de vida dos bichinhos, conduzem um processo de educação inicial. Os cachorros são levados a todos os lugares para aprender sobre a maneira de viver dos humanos. Após 12 meses, eles retornam para a escola para começarem a receber instruções específicas.

“Quando o animal estiver pronto e soubermos a dinâmica de interação dele, como, por exemplo, a velocidade da caminhada, se ele é mais adequado para viver na cidade grande ou no interior, é que vamos procurar um cego que se encaixe no mesmo perfil”, detalha o treinador do Magnus.

A partir de então, cão e tutor passam por um treinamento juntos durante um mês aproximadamente. Aos 10 anos mais ou menos – a época exata vai depender das condições de saúde do animal –, o cão-guia é aposentado. Geralmente, ele permanece com o deficiente visual que foi guiado por ele ao longo da vida ou com um parente próximo com quem também tenha se relacionado.

Filantropia

Criado há pouco mais de um ano, o instituto paulista tem 15 cães sendo socializados atualmente. É uma iniciativa sem fins lucrativos, mantida por meio de doações de empresas e de pessoas físicas. “Não existe venda de cães-guia. Se ouvir falar disso, pode saber que tem alguma coisa errada. Esse assunto não é muito abordado, mas temos relatos de experiências desastrosas, nas quais o animal não se adequou às necessidades da pessoa. Há uma questão de compatibilidade, para que não seja entregue um sapato que não caiba em seu pé”, salienta Harrison.

Na contramão do preconceito

O músico carioca Jonas Santiago, de 32 anos, também recorreu a um guia de quatro patas, o Trevor, para ajudá-lo a se locomover. O macho da raça Golden, de pouco menos de 3 anos, substituiu Zuca, uma labrador de 12, “loirinha”, como ele mesmo diz, aposentada desde 2015. “Acabou o regime disciplinar, e ela virou um bicho de estimação, a rainha da casa”, conta.

Nascido com uma deficiência genética que acarreta um processo degenerativo na mácula ocular, ele começou a perder a visão aos 10 anos. Embora tenha aprendido a se virar bem com a bengala, o músico garante que nada se compara à atuação dos cães-guia. Entre a aposentadoria de Zuca e a chegada de Trevor, também treinado por Harrison, ele precisou lançar mão de outros métodos para se deslocar pela cidade.

Cães do Instituto Magnus, em Sorocaba, no interior de São Paulo, em treinamento

Cães do Instituto Magnus, em Sorocaba, no interior de São Paulo, em treinamento

“E foi brutal. É bem complicado, porque nossos problemas com segurança pública não são maiores do que os com urbanismo. Um marginal de rua, que prejudica um indivíduo por vez, não rouba nem de longe o que uma empreiteira rouba, prejudicando todos”, diz, criticando a deficiência de acessibilidade e as condições precárias de mobilidade nos centros urbanos brasileiros.

Outro desafio, segundo Santiago, é o velho e já tão ultrapassado – mas ainda presente – preconceito. “Creio que minha maior dificuldade inicial (com o cão-guia) foi com a ruptura daquele idealismo de que temos que ser fisicamente perfeitos. Tive dificuldades com a bengala e com o braile no começo. Mais por preconceito do que por qualquer oura coisa. No Brasil, temos a cultura de jogar no calabouço o que é diferente. É difícil encontrarmos um deficiente ativo, mas estamos na guerra para romper isso”, salienta.

Missão: cão-guia

A relação do homem com os cachorros é milenar, e não é à toa que eles são considerados nossos melhores amigos. Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de Minas Gerais (CRMV/MG) e diretor do hospital veterinário do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH), Bruno Divino, achados arqueológicos já revelaram que seres humanos se relacionaram com cães muito antes do que com qualquer outra espécie doméstica, e foi justamente esse relacionamento estável que possibilitou o treinamento dos animais que, hoje, guiam cegos.

“Os cães, por causa dessa relação afetiva e simbiótica, são ferramentas de auxílio a diversas pessoas e possuem capacidades enormes para isso. Conseguimos combinar as funções deles com a afetividade, o que aparelhos eletrônicos, por exemplo, não são capazes de oferecer. Uma vantagem do cão-guia é que ele se torna um companheiro com amor incondicional por aqueles que, muitas vezes, sofrem preconceitos e são marginalizados pela sociedade. Quando o cego tem um cachorro como acompanhante, as pessoas se aproximam dele, e as relações pessoais melhoram”, destaca Divino.

De acordo com ele, atuar como um cão-guia não faz mal nenhum ao animal, porque não há exploração, maus-tratos nem abusos nessa “profissão”. “É preciso tomar cuidado apenas com o seguinte: o cachorro tem que ter acompanhamento constante por parte de um veterinário a fim de se evitar que ele transmita doenças para o cego”, afirma.

Dominante absoluto

Embora não sejam comuns em território mineiro – nem no brasileiro, de maneira geral –, não é difícil notar a prevalência de cães-guia labradores. A justificativa, conforme explicado pelo presidente do CRMV/MG, está nas características da raça. Para ser funcional, o animal deve desempenhar a função sem agredir, morder, derrubar ou fazer estardalhaço. Ser bastante condicionável, fácil de treinar e ter porte grande são alguns dos requisitos para essa tarefa. Algumas raças se enquadram em parte desse perfil, mas o labrador é o que reúne todos os atributos. “O Golden é bem parecido, mas ele solta muito pelo e é mais propício a ter doenças de pele. Já o Rottweiler, que tem o mesmo porte, é agressivo”, justifica Divino.

Destino incerto

“Falar de cães-guia em Belo Horizonte é fácil, porque é zero”. Foi assim que o presidente da Associação de Amigos do Instituto São Rafael (AAISR), Juarez Gomes Martins, começou a conversa com a reportagem da revista Mais. Há aproximadamente dois anos, ele, juntamente com Bruno Divino, do CRMV/MG, tentou tirar do papel um projeto de adestramento de animais na capital mineira, mas acabou esbarrando no obstáculo mais comum: a falta de recursos financeiros para começar e manter a iniciativa.“Chegamos a conversar com a Polícia Militar (PM) para utilizar o canil da corporação, onde os cães seriam treinados e mantidos. A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) ficou de nos ajudar, mas não tivemos retorno”, lamenta Martins.

De acordo com Divino, o custo elevado é, justamente, um dos motivos para os cães-guia serem tão raros no país – “nunca vi um por aqui”. A formação de um animal, desde a socialização até a entrega definitiva para o cego, não sai por menos de R$ 20 mil, segundo o veterinário. “A meu ver, pelo que os animais trazem de benefícios, é até barato, mas é preciso avaliar se o governo tem recursos para isso e a qualidade que de fato esse investimento vai propiciar como retorno. São necessários estudos de custo-efetividade. Por outro lado, se pensarmos que um carro adaptado para deficientes físicos tem tantos benefícios – os quais, muitas vezes, passam de R$ 20 mil –, por que não oferecer isso aos cegos por meio dos cães-guia?”, compara.

Posicionamento

Em nota, a Secretaria de Saúde informou que a proposta de parceria entre o canil da PM e a pasta estava em fase de elaboração em 2014. “No entanto, seria necessária uma contrapartida financeira por parte da SES-MG para dar continuidade ao projeto, e, em razão da crise financeira atravessada pelo Estado, não foi possível dar andamento ao projeto. Atualmente, em Minas Gerais, não há, por parte da SES-MG, projeto relacionado ao tema”, diz o texto.

Guiados pelo amor

Há sete anos, a cadela Brida, uma labrador amarela de 9 anos, deu um novo sentido à vida do bancário aposentado Carlos Eduardo Alvim, de 53. Morador de Niterói, no litoral fluminense, ele perdeu completamente a visão em decorrência de uma retinose pigmentar – doença hereditária que degenera a retina –, diagnosticada em 1997. Com vergonha de as pessoas saberem que não enxergava mais, ele criou resistência ao aprendizado do uso da bengala, da leitura em braile e de tudo que o fizesse admitir a nova condição. Deprimido e inconformado, ele seguiu assim até saber, por meio de uma reportagem, da possibilidade de ter um cão-guia.

Inicialmente, Alvim pensou que seria fácil conseguir um animal e que bastaria pedir a alguém que o treinasse. Logo, ele descobriu que não ia ser tão simples. Com sorte, porém, chegou até George Harrison – que ainda desenvolvia o projeto Cão Guia Brasil, no Rio de Janeiro – e, dois anos e meio mais tarde, após muita ansiedade e expectativa, recebeu Brida em casa. Mas engana-se quem pensa que correu tudo bem de imediato.“A confiança era o mais difícil. Ficava pensando em como eu ia acreditar em um bicho peludo, de quatro patas, sem saber o porquê de ele ter desviado do caminho. Até que mais ou menos um ano e meio depois de a Brida chegar viajei de avião sozinho com ela para outro Estado, e esse episódio foi um divisor de águas. Quando você adquire confiança, tira de letra e anda de olhos fechados”, brinca o aposentado.


A parceria deu tão certo que Alvim e Brida protagonizam o capítulo 7 do livro “Amor de Guia”, criado a partir de um trabalho de conclusão de curso da jornalista Natália Alcântara – a cadela, inclusive, estampa a capa da publicação. Hoje, ele afirma que é difícil imaginar a vida sem a fiel companheira, com a qual ele divide as 24 horas do dia. “É mais até do que com minha esposa, que dorme comigo”, diverte-se.

A relação com a labrador trouxe também a certeza de que os quatro sentidos ativos são o bastante para uma vida normal e feliz. E Alvim faz questão de ressaltar que nem ele nem nenhum outro cego são dignos de pena: “Em pleno século XXI, não é para ter dó. Se for ajudar a atravessar a rua, faça isso porque acha que deve, não para ser uma boa ação do dia. Como diz um amigo meu: ‘não me use para ganhar seu quadradinho no céu’”.




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