Mau passado, péssimo presente

Consumo de carne é um dos maiores vilões da Amazônia. Estudos mostram que cerca de 70% da área desmatada na região hoje é utilizada pela atividade pecuária, e quase todo o restante é destinado ao cultivo de grãos para a produção de ração para os animais q

Criado em 12 de Outubro de 2019 Capa
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Iêva Tatiana

Nas últimas semanas, os incêndios na Amazônia foram destaque na imprensa do mundo inteiro e forçaram as autoridades e a população brasileiras a voltarem as atenções para as causas dessa terrível consequência. Entre elas está a pecuária, responsável pela maior parte do desmatamento na região e que concentrou 80% do crescimento do rebanho bovino nacional de 1990 a 2002, de acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). A entidade destaca ainda que hoje cerca de 70% da terra desmatada em território amazônico é usada como pasto, enquanto uma grande porção da área restante é coberta por plantações cultivadas para a produção de grãos que servirão como ingredientes para a ração de animais que serão engordados e abatidos.


O desequilíbrio nessa balança fica ainda mais evidente diante de um levantamento divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2012. O estudo mostrou que, para cada 1 kg de carne bovina produzida, são empregados de 5 kg a 10 kg de alimentos vegetais. Sendo assim, a alimentação à base de carne implica um consumo maior de fertilizantes, de terra, de agrotóxicos, de água e de recursos em geral. Isso ocorre porque a produção requer uma grande quantidade de insumos vegetais, normalmente cultivados em monoculturas de larga escala.

A organização internacional Greenpeace há anos também vem alertando sobre os prejuízos ambientais que a expansão da criação de gados causa à região amazônica. Muitos pecuaristas ateiam fogo à vegetação para criarem novas áreas de pastagem. Outros utilizam tratores e escavadeiras para que as árvores deem espaço aos animais que serão futuramente encaminhados para os abatedouros.


A AMAZÔNIA LEGAL abrange a totalidade do Acre, do Amapá, do Amazonas, do Pará, de Rondônia e de Roraima, além de parte do Maranhão, do Mato Grosso e do Tocantins. A região foi instituída em 1953, por meio da Lei 1.806, sancionada por Getúlio Vargas, visando ao incremento socioeconômico da área. O bioma se estende por outros oito países sul-americanos: Bolívia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.

Em 2009, a publicação do relatório “A farra do boi na Amazônia”, feita pelo Greenpeace, resultou no Compromisso Público da Pecuária, assinado pelos maiores frigoríficos do país. Embora o acordo não tenha sido muito efetivo, o grupo reconhece que ele foi ao menos um divisor de águas no setor. Seis anos mais tarde, foi lançado outro relatório, “Carne ao molho-madeira”, mostrando que os principais supermercados brasileiros não garantiam aos clientes que a carne vendida nos freezers respeitava o meio ambiente e os direitos humanos.

“Apesar de todos os esforços em andamento, ainda há grandes chances de o consumidor encontrar carne com desmatamento nos supermercados e nos estabelecimentos que frequenta. Por isso, precisamos continuar pressionando para que o modelo de produção e de consumo não contribua para a destruição da maior floresta tropical do planeta”, afirma a organização.

Benefícios generalizados

Diante desses levantamentos, uma das recomendações da SVB para reduzir os impactos provocados pela pecuária é, justamente, a redução do consumo de carnes. Recentemente, a sugestão da entidade foi corroborada por um relatório especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, elaborado por mais de cem pesquisadores de diversos países – incluindo o Brasil – e lançado em Genebra, na Suíça, em agosto último. Os especialistas concluíram que, além de gerar benefícios significativos para a saúde humana, reduzir a ingestão de carnes “poderia liberar milhões de km² de terra”.

Antenada à questão, a jornalista Bruna Costa Nogueira, de 23 anos, decidiu fazer dos talheres suas principais armas nessa batalha. Ela conta que se tornou vegetariana em 2011, depois de realizar buscas na internet e se inteirar melhor do processo de produção das carnes e do sofrimento dos animais. Desde então, o que era um desconforto à mesa se transformou em uma decisão definitiva – e inicialmente desafiadora, já que as opções de cardápios vegetarianos eram escassas oito anos atrás, e as discussões sobre o tema, também.

“Acho que o assunto ficou mais popular à medida que se tornou mais urgente. Na correria do dia a dia, não paramos muito para pensar na origem ou no impacto do que estamos comendo, mal pensamos no aquecimento global. A gente escuta que deve plantar árvores, mas não entende que uma espécie demora a crescer; que para cada quilo de carne é necessário gastar 15 mil litros de água no processo; ou que quase 100% do desmatamento da Amazônia é culpa da indústria pecuária”, diz a jornalista.

Bruna lembra que, no começo, contou com a ajuda da mãe para enriquecer os pratos, substituindo a proteína animal por alimentos vegetais, como a lentilha e a soja, e garante que nunca sentiu falta de consumir carne. Por outro lado, ela reconhece que a opção que fez evidencia uma posição privilegiada dela na sociedade.

“Não como porque não concordo, mas, acima de tudo, porque não preciso. Quando algumas classes sociais entendem que o consumo de animais como fonte de proteína não é uma necessidade para nossa existência humana e podem escolher cortá-lo, elas estão fazendo a parte delas para ajudar o planeta. Não é todo mundo que pode escolher o que comer. Então, se minha escolha fizer a diferença, acho que é o mínimo que eu posso fazer”, conclui.

Sem sacrifício

Uma das campanhas apoiadas pela Sociedade Vegetariana Brasileira é a Segunda sem Carne, realizada em mais de 40 países, como Estados Unidos e Inglaterra – onde é encabeçada pelo ex-Beatle Paul McCartney. No Brasil, a iniciativa foi lançada em outubro de 2009 e, atualmente, também recebe o apoio de governos, empresas e celebridades.


A proposta é deixar os produtos de origem animal fora do prato nas segundas-feiras – dia mundial para o início de um novo estilo de vida – e substituí-los por alimentos vegetais. A meta é mostrar que existem múltiplas possibilidades de cardápios saborosos que não envolvem o abate de nenhuma espécie. A ação busca conscientizar as pessoas sobre os malefícios do consumo de carnes para a fauna, a saúde humana e o planeta.

“Não comer carne sempre foi um ato político. Se alguém não consome um produto porque ele tem um enorme impacto no meio ambiente, esse ato é, por si só, um posicionamento. Hoje, o equívoco de alguns é pensar que se trata de um gesto partidário. Contudo, pessoas de direita, de esquerda, de cima, de baixo, seja de onde forem, podem ser vegetarianas”, ressalta o presidente da SVB, Ricardo Laurino, destacando que o vegetarianismo não tem sigla.

Ele salienta também que, apesar de ser difícil convencer as pessoas a excluírem a carne de todas as refeições, está mais fácil dialogar com elas sobre o assunto. “Atualmente, há mais abertura para esse discurso, é possível debater o tema, embora estejamos no início do processo”, diz Laurino.

O presidente da SVB afirma ainda que a entidade tem sido cada vez mais procurada por gente interessada em conhecer melhor os efeitos da pecuária nas intensas queimadas que vêm ocorrendo na Amazônia neste ano – relação que, segundo ele, não é novidade e tem sido mostrada desde a fundação da instituição, há 16 anos. “É um dos nossos pilares inclusive”, emenda Ricardo Laurino.

Em 2014, dados divulgados pela SVB mostraram que a produção média nacional, ao longo de um ano, foi de 60 kg de carne em uma área de um hectare. Nos mesmos período e espaço, foram produzidas 27,6 toneladas de batata, quase 25 kg de milho e uma tonelada de feijão.

“Lamentamos saber que, quando ocorre uma crise como a atual, essas informações são subtraídas pela maior parte da mídia, fazendo com que as pessoas se sintam de mãos amarradas. Nós sabemos que precisamos parar com as queimadas, cuidar da Amazônia, fiscalizar. Porém, não se fala como essas coisas devem ser feitas. A principal medida é não alimentar aquilo que mais destrói a região, o Cerrado e todos os nossos biomas: a pecuária”, finaliza Laurino.

Natureza em chamas

Os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registraram, de 1º a 18 de setembro deste ano, 14.343 focos de calor – que podem ser ou não incêndios florestais – na Amazônia Legal. O Estado com a maior leitura foi o Mato Grosso (3.975), seguido pelo Pará (3.234) e por Rondônia (2.668).

Os satélites do Inpe registraram, de 1º a 18 de setembro, 14.343 focos de calor na Amazônia Legal; imagem mostra área de proteção em Alter do Chão, no Pará, Estado com a segunda maior leitura, 3.234

Em agosto, o total de focos na região chegou a 30.900, de acordo com o Inpe. Na época, o Pará liderou o ranking (10.185), e, logo atrás, vieram Amazonas (6.668) e Rondônia (5.592). Naquele mês, a Nasa, agência espacial norte-americana, afirmou que 2019 já está sendo o pior ano de queimadas na porção amazônica brasileira desde 2010.

Por causa da intensificação dessas ocorrências na Amazônia, o governo federal lançou a operação Verde Brasil, que levou 7.000 homens das Forças Armadas para a região. De 24 de agosto a 18 de setembro, os militares combateram mais de 400 focos de incêndio, apreenderam aproximadamente 17 mil metros cúbicos de madeira e aplicaram multas que, juntas, somam R$ 22,5 milhões.

A operação também resultou na apreensão de caminhões, tratores, carretas, motos, motosserras e embarcações utilizados no desmatamento ilegal e em garimpos clandestinos. No mesmo período, quatro madeireiras foram interditadas dentro da terra indígena Alto Turiaçu, no oeste do Maranhão, após a destruição de dez acampamentos e de oito pontes.

Balanço regional

Em Minas Gerais, a combinação de calor e tempo seco também tem causado estragos. O monitoramento feito pelo Inpe por meio de satélites registrou 19.786 focos de calor em todo o Estado em agosto. Somente nos primeiros 18 dias de setembro, esse número mais do que dobrou, chegando a 43.349.


No Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, em Belo Horizonte, a estimativa do Corpo de Bombeiros é que as chamas tenham consumido cerca de 30 hectares de vegetação na primeira quinzena do mês. Um incêndio de grandes proporções também atingiu a serra da Moeda, na segunda metade de setembro, afetando Moeda, Nova Lima e Brumadinho, na região metropolitana da capital. A fumaça foi sentida em vários municípios, agravando o quadro de doenças respiratórias de quem já vinha sofrendo com os baixos índices de umidade relativa do ar.




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