No rastro da Cachaça

Bebidas

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Criado em 12 de Fevereiro de 2014 Capa
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Produtores de Betim e de cidades vizinhas revelam os segredos na fabricação de seus alambiques que fazem com que, nos últimos 20 anos, a bebida destilada mais consumida do país e um dos maiores símbolos nacionais esteja adquirindo o status de nobre
 
Lisley Alvarenga
 
 
Luiz Otávio Pôssas, empresário visionário que, após a morte do pai, um famoso bancário, desistiu de ser médico e iniciou sua sina: a de atuar no ramo de bebidas, sendo, inclusive, o fundador da Kaiser. Geraldo Silva Santos, o Lapinha, carpinteiro nascido em Betim e criador de uma das principais rádios do país. João Paulo Araújo, belo-horizontino formado em administração de empresas e funcionário público do Estado há 26 anos. Altair Antônio do Amaral e Eder José Campos, produtores de bebidas. Lúcio Moreira Oliveira, filho herdeiro de um fabricante de aguardentes. O que eles têm em comum? Todos se dedicam a produzir, bem aqui, nas terras da região metropolitana de Belo Horizonte, a cachaça, uma bebida genuinamente brasileira e a primeira no ranking dos destilados mais consumidos do país.
 
Uma das mais tradicionais e reconhecidas pela notória excelência no mercado nacional e internacional é a Vale Verde, marca produzida, desde 1986, na fazenda Vale Verde, hoje um parque ecológico, localizado na região do bairro Vianópolis, em Betim. No alambique, que tem período de produção entre os meses de maio e setembro, são desenvolvidos, em média, 150 mil litros do líquido por safra. “Se consideramos os demais produtos que também são feitos na fazenda, como a cachaça Minha Deusa, a Gelatina de Cachaça e os Licores do Mestre e 1727, contabilizamos, anualmente, um faturamento aproximado de R$ 8 milhões”, afirma um dos pioneiros do setor e idealizador da marca, Luiz Otávio Pôssas.
 
Antes de ser comercializada, a Vale Verde, aguardente de cor dourada e de sabor suave que, inclusive, foi considerada, em 2007, a melhor cachaça do Brasil e recebeu, por três ocasiões, o primeiro lugar no “Ranking Playboy da Cachaça”, precisa permanecer em barris de carvalho europeus por três anos. “Toda a etapa de elaboração segue um rigoroso controle de qualidade, desde o plantio da sua cana, que, além de ser proveniente de produção própria, é meticulosamente controlada e colhida no ponto certo, até a sua destilação, filtragem e envelhecimento. Lembrando que essa última etapa é feita lentamente e em adegas com controle de temperatura e umidade. Já no caso da Minha Deusa, que é nossa cachaça branca, o diferencial é que ela fica armazenada em tonéis de grapia por, aproximadamente, seis meses, antes de sua comercialização”, explica o enólogo da Vale Verde, Daniel Fornari.
 
O faturamento anual do empresário Luiz Otávio Pôssas com a fabricação da cachaça Vale Verde e os demais produtos do seu alambique é estimado em quase R$ 8 milhões. Foto: Washington Alves/Divulgação
 
Tanta preocupação no processo de produção garante a qualidade das cachaças Minha Deusa e Vale Verde. Essa última também adquiriu o status de ex-trapremium, segundo classificação feita pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “O segredo do sucesso das bebidas produzidas aqui são a utilização de uma tecnologia de ponta, atrelada a uma mão de obra qualificada, ao cuidado e à paixão pelo que se faz. Para a produção da Vale Verde e da Minha Deusa, como nossos demais produtos, conto com enorme aporte tecnológico. Tenho, inclusive, uma consultoria da universidade de Piracicaba, com uma das maiores autoridades em Minas no que se refere a destilados e fermentados, e um convênio com a Universidade Federal de Viçosa em termos de preservação de qualidade do produto”, revela Pôssas.
 
A preocupação e o cuidado com a natureza são outros aspectos das bebidas produzidas pelo empresário. Prova disso é que todas as etapas do processo de produção das aguardentes, desde a colheita a sua comercialização, são “ecoeficientes”, ou seja, consideradas limpas e sustentáveis.
 
Ouro de Minas
Outro exemplo de refinamento quando se fala de cachaça é a marca Brumado Velho. Criada, desde 1992, na cidade de Brumadinho, a bebida feita artesanalmente em alambique é produzida a partir de um canavial próprio, formado somente com mudas selecionadas. A cana-de-açúcar é cortada e moída em até 24 horas, evidenciando, assim, qualidade superior ao produto, desde o início do processo. “Em sua fermentação, utiliza-se o fubá de milho, sem nenhum aditivo químico. Depois, ela é destilada em alambiques de cobre. São descartados o início e o final de cada alambicada, transformando-se em produto final somente a parte mais nobre do destilado, popularmente chamada de ‘coração’”, explica o proprietário da marca, João Paulo Araújo.
 
O resultado de tanto trabalho é uma bebida homogênea, saborosa e única, que, inclusive, possui o selo de qualidade da Associação Mineira dos Produtores de Cachaça de Qualidade (Ampaq) e foi premiada em primeiro lugar no IX Festival da Cachaça de Minas Gerais. “A Brumado Velho ficou ainda com o segundo lugar na premiação da escolha do júri popular A produção da cachaça Lapinga, marca fundada há 43 anos em Betim por uma das figuras mais tradicionais da cidade, Geraldo da Silva Santos, o Lapinha, está em pleno vapor e recebeu a medalha de prata no mesmo festival, em 1996”, conta o produtor.
 
Segundo o produtor João Paulo Araújo, a cachaça Brumado Velho é produzida a partir de um canavial próprio, formado somente com mudas selecionadas/ Fotos: Deivisson Fernandes
 
Do criterioso processo de envelhecimento do alambique são apuradas três bebidas: Brumado Velho Ouro, Brumado Velho Prata e Cachaça Brazilian Way. A primeira, armazenada em tonéis de carvalho, caracteriza-se pela coloração amarelada e um suave e inigualável paladar. A versão prata, ou melhor, branca, é conservada em dornas de jequitibá, o que mantém as características e o sabor de uma bebida encorpada e cristalina, ideal para batidas, coquetéis e drinks.
 
Já a Brazilian Way, especialmente desenvolvida para atender ao mercado norte-americano, tem uma produção limitada e seu rótulo é assinado por um artista plástico embarcadas 500 caixas para seu lançamento, que ocorrerá, neste mês de fevereiro, em Miami”, revela Araújo, que tem uma produção anual que gira em torno de 80 mil litros.
 
Pinga com tradição
Na esteira da multiplicação de aguardentes de qualidade na região metropolitana da capital, podemos citar ainda a produção da marca Lapinga, fundada há 43 anos em Betim por uma das figuras mais tradicionais da cidade: o senhor Geraldo da Silva Santos, conhecido com Lapinha, o Barão. O nome da bebida, uma mescla do apelido do seu idealizador e da forma como ela é popularmente conhecida no país, é um dos fatores que tem ajudado a divulgar a marca por todo o Estado. “Apesar de existir há muitos anos, somente agora ela está sendo comercializada. E, diante da qualidade do nosso produto, já estamos conquistando o mercado. Hoje, é possível encontrá-
la nas principais distribuidoras de Belo Horizonte e nos grandes supermercados de Betim e região”, conta o representante comercial da Lapinga, Tiago Felipe Silva Santos.
 
A produção da cachaça Lapinga, marca fundada há 43 anos em Betim por uma das figuras mais tradicionais da cidade, Geraldo da Silva Santos, o Lapinha, está em pleno vapor
 
No processo de produção, todo realizado em uma das mais antigas fazendas do município, o proprietário da marca conta com um ingrediente mais que especial: a dedicação incontestável do destilador de cachaça Ricardo Marques, que, há 20 anos, atua no ramo e já trabalhou na produção de uma das cachaças mais famosas e internacionalmente reconhecidas, a Havana, de Salinas, na região Norte do Estado.
 
É Marques quem acompanha, com outros funcionários, desde a safra ao período de envelhecimento do líquido. “A cana vem do canavial com, no máximo, oito horas de corte. Passa pelo engenho, vai para o decantador, onde é filtrada a garapa, o seja, o caldo de cana. Depois de ser fermentada naturalmente com fubá de milho torrado e em vasilhas de inox, o que dá o sabor e o aroma diferenciado da bebida, ela é despejada em um alambique de cobre de pequeno porte, onde será feita a destilação. Lá, ela passa por um processo de evaporação e, posteriormente, de maturação, que dura cerca de seis meses. A última etapa é o envelhecimento, feito em torno de três anos, em barris de carvalho e de jequitibá”, explica o destilador, ao ressaltar que é esse armazenamento que confere a alta qualidade do destilado, reconhecida pelos mais exigentes apreciadores da bebida.
 
Legado de família
E o leque de opções para quem quer degustar uma boa cachaça mineira não para por aí. Em São Joaquim de Bicas, ou, mais precisamente, em Farofas, distrito do município, é possível experimentar ainda a aguardente Chiquita Bacana, antiga Cachaça Atômica.
 
Foi por incentivo dos bisavós do empresário Altair Antônio do Amaral, principal sócio da empresa atualmente, que seus pais, Altair Alves do Amaral e Maria Raimunda Henriques do Amaral, começaram a investir no ramo da cachaça, desde 1938. O filho mais novo, que hoje administra o alambique em Farofas, juntamente com seu sobrinho, Maurício do Amaral Prado, interessou-se mais pela produção da bebida e acabou aprimorando a empresa, para que a tradição familiar não deixasse de ser passada de pai para filho, após anos de história.
 
Segundo o produtor da Chiquita Bacana, Altair Antônio do Amaral, foi sua mãe quem transmitiu os conhecimentos de como fazer uma boa receita de cachaça
 
“Minha mãe quem aprendeu a fabricar a bebida na fazenda do Tatu, localizada em Igarapé, onde morava com seus avós. Ela transmitiu para nossa família seus conhecimentos de como fazer uma boa receita de cachaça. É claro que aprimorei a tecnologia da produção ao longo do tempo, por meio dos cursos que fiz, do cuidado na seleção da matéria-prima, dos minuciosos critérios na produção e do controle de qualidade. Hoje, é minha filha mais nova, Daniella, quem se mostra mais disposta a dar continuidade ao patrimônio”, explica Altair Antônio do Amaral.
 
O processo de produção é 100% artesanal e o armazenamento do líquido, feito em tonéis de carvalho e de jequitibá. Em média, são fabricados 40 mil litros de cachaça por ano, sendo que parte dessa produção é destinada ao envelhecimento.
 
Para Antônio, o grande diferencial do destilado, que possui ainda o selo de qualidade do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), é, além da tradição, o rigor e a dedicação empreendidos nas etapas da produção. “Isso faz com que o sabor e o aroma de nossa cachaça sejam suaves e admirados. A maior preocupação da Chiquita é a satisfação de nossos clientes. Procuramos sempre aprimorar nossos serviços, desde os minuciosos cuidados da produção e excelência no atendimento ao consumidor até o pós-venda, o que é fundamental em qualquer empresa”, salienta o produtor.
 
Sabor centenário
O distrito de Francelinos, em Juatuba, também tem sua nobre representante no rol das boas cachaças mineiras: a Caninha São Mateus, aguardente fabricada há mais de 100 anos na região. De propriedade de José de Freitas Campos, o Zezé, e, hoje, sob a responsabilidade de Eder José Campos, o alambique guarda os segredos da produção iniciada pelo pai de Zezé, Abel de Freitas Campos, quem registou a marca, em 1933.
 
Criada há mais de 100 anos, a Caninha São Mateus, de propriedade de José de Freitas Campos e, hoje, sob responsabilidade de Eder José Campos (foto), faz parte da história de Francelinos
 
“Nessa época, meu pai também registrou outra bebida, a Mineira da Coroa, mas, parece que ela não agradou muito o paladar dos consumidores, por ser uma pinga muito forte, feita com crista de cachaça. Com isso, acabou sendo extinta. Outra coisa também mudou: o alambique que, antes, funcionava em Curralinho (onde hoje se encontra a Represa de Serra Azul), foi transferido para Francelinos, por causa da construção de uma barragem, em 1980”, afirma o produtor Zezé.
 
Atualmente, todo o processo de produção mobiliza quatro funcionários, que trabalham de segunda a sábado para fabricar, em média, 300 litros da aguardente por dia. “Na época do meu pai, eram feitos diariamente mil litros da bebida. O processo é o mesmo do meu avô, há mais de 100 anos. Iniciamos a fabricação em junho e terminamos em dezembro. No restante do ano, fazemos o plantio da cana
para a próxima safra. Ela é comprada das fazendas de Cláudio e Itapecerica, e em terras alugadas em Serra Azul. Já nossa distribuição ocorre por cidades da região, como Igarapé, Bicas, Juatuba e Betim”, explica Zezé.
 
 
De pai para filho
Outra cria ilustre da região é a cachaça Amorosa, uma bebida que começou a ser produzida na cidade de Mário Campos, na década de 1940, época em que eram envazados, anualmente, 90 mil litros da aguardente. Ao longo dos anos, o segredo do sabor do destilado 100% artesanal foi repassado de pai para filho. “A marca foi criada pelo meu pai, Antônio Moreira de Oliveira. Como era um produto muito consumido nesse período e os demais alambiques ficavam muito distantes, meu pai, visando um crescimento financeiro, resolveu criar um alambique em Mário Campos”, recorda o herdeiro da marca, Lúcio Moreira Oliveira.
 
E o nome diferente da bebida, Amorosa, surgiu de uma conversa entre amigos do pai de Lúcio Moreira. “Eles diziam que, muitas vezes, tinham de beber algumas doses da cachaça antes de seus encontros amorosos, para poderem criar coragem para se declarar para suas amadas. Daí o nome Amorosa”, conta.
 
Herdeiro da marca Amorosa, Lúcio Moreira Oliveira conta que, na década de 1940, eram envazados, anualmente, no alambique em Mário Campos, 90 mil litros da aguardente
 
Porém, apesar do sabor reconhecido pelos apreciadores da marca, a produção se encerrou em 1992, data em que o pai de Lúcio faleceu. “Sem alguém para dar continuidade ao processo de fabricação e de conservação dos equipamentos, tudo ruiu, ficando sem condições de uso. Somente quando retornei de São Paulo, em 2003, para aqui me restabelecer, reiniciei a construção de todos os equipamentos necessários para fazer a minha própria cachaça. Hoje, tenho toda a estrutura montada, e a aguardente que fabrico manteve o mesmo nome que meu pai havia colocado”, explica o produtor, que dispensa, assim como o pai, o mesmo carinho e dedicação à produção da cachaça.
 
Atualmente, com uma produção modesta, Lúcio orgulha-se em poder presentear amigos, parentes e apreciar sua cachaça em rodas de amigos. “É uma forma de resgatar a lembrança do meu pai. Desta forma, consegui compreendê-lo muito mais hoje”, revela.
 

 




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