O QUADRO NEGRO

POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

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Criado em 15 de Maio de 2014 Cultura

Deusa Attie - Grupo étnico Attie, Costa do Marfim (séc XIX)/ Reprodução

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“Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n'alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Não a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.”
Cruz e Sousa, poeta brasileiro filho de escravos (1861-1988)
 
Quando ouço o debate pálido sobre a política de cotas no Brasil, aquela mesma, que assegura aos excluídos socialmente a preferência nas vagas das universidades públicas, nunca consigo afastar o sentimento de como somos ainda um povo ignorante e irresponsável do ponto de vista social. Eu poderia escrever livros sobre o tema da questão racial, mas, dado o espaço da coluna, procurarei ser breve.
 
Ninguém ignora que os povos de raça negra foram escravos, nem que eles foram escravizados pelos brancos. São bem conhecidos também os dados que mostram que os afrodescendentes têm salários menores, menos empregos, acesso à saúde, educação, moradia, etc. Também é sabido que nossos agentes policiais abordam os negros, vamos dizer, de forma mais truculenta. É de se esperar que a essa altura todos saibam disso.
 
Neste país de tanta liberdade religiosa, nossos apóstolos do evangelismo moderno não dizem que os judeus, muçulmanos, católicos, batistas, luteranos, adventistas, calvinistas são agentes de satanás ou apóstolos do mal. Mas, quando se referem ao candomblé, ou outros cultos de origem africana, lá vêm os exorcistas acender suas fogueiras.
 
Temos a magia negra, maléfica, e a branca, bondosa. Deus fez a luz, mas não a escuridão. A nossa própria relação simbólica com o que vem da noite, ou é escuro, é desvirtuada por nossos medos e preconceitos.
 
Na própria Bíblia, existe uma passagem em que Cam, filho de Noé, tendo encontrado seu pai bêbado e escornado no chão, em vez de cobri-lo, relatou o fato aos seus irmãos. Noé – “cheio de perdão e misericórdia paterna” – amaldiçoou então a Cam, pedindo a Deus que o amaldiçoasse, quando a pele de Cam teria se tingido de negro.
 
“A maldição de Cam foi usada por alguns membros de religiões abraâmicas para justificar o racismo e a escravidão eterna de negros
africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam” (in DALY, John Patrick. When Slavery Was Called Freedom: Evangelicalism, Proslavery, and the Causes of the Civil War Religion in the South. The University Press of Kentucky, 31 Oct 2004, p. 37; e TASLITZ, Andrew E. Reconstructing the Fourth Amendment: a history of search and seizure, 1789-1868. New York University Press, 15 Oct 2006, p. 99).
 
“Defensores da escravidão nos Estados Unidos invocaram consistentemente este relato da Bíblia ao longo do século 19 em resposta ao crescimento do movimento abolicionista” (Sylvester A. Johnson. The myth of Ham in nineteenth-century American Christianity: race, heathens, and the people of God. [S.l.]: Macmillan, 2004. p. 37).
 
No Brasil, a maldição de Cam serviu de justificativa para escravizar os índios, tendo missionário da ordem de São Pedro João de Sousa Ferreira afirmado: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos” e continuou “(e os índios brasileiros) são da descendência da maldição de Ham” ( John Hemming, Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Ouro Vermelho: A Conquista dos Índios Brasileiros). Os portugueses igualmente consideravam os negros descendentes de Cam. A cor era o sinal da maldição e justificava a escravidão (HISTÓRICA - Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. historica.arquivoestado.sp.gov.br. Página visitada em 25 de abril de 2014). (Informações da Wikipédia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Cam - acesso em 25 de abril de 2014).
 
Então é de se recomendar cuidado às “nossas almas piedosas”, quando defenderem a tese de que as políticas afirmativas – aquelas que defendem a inclusão social de parcelas da sociedade discriminadas socialmente através de políticas públicas –, são uma discriminação às avessas, ou um desserviço à sociedade, porque essa farsa, na verdade, é bem antiga, e serve a propósito hegemonista e perpetuador da tragédia histórica imposta aos povos negros, indígenas pobres em geral. É a hora de apagar nosso quadro negro para começar a escrever outra história!
 
* Crítico de arte, estudioso de direito e de psicanálise e professor de judô – [email protected].



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