Os espelhos de Narciso

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Criado em 20 de Fevereiro de 2013 Cultura
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POR Domingos de Souza Nogueira Neto*

 

 

O mito de Narciso – o homem apaixonado por si mesmo – inseminou na cultura, na arte e na psicanálise valores estéticos e culturais cujos desdobramentos são ilimitados. Da obra de Sigmund Freud, de Lacan, à música de Caetano Veloso e do Barão Vermelho, passando pela pintura de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner, Salvador Dalí, Waterhouse, e considerando ainda a literatura de Ovídio, John Keats, Stendhal, André Gide, Oscar Wilde, Fiódor Dostoiévski, e mesmo de Paulo Coelho, em seu alquimista, Narciso e o narcisismo estão em toda parte. 
 
Existem várias versões sobre a história de Narciso. Na mais usual, ele era filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. A beleza de Narciso era indescritível e, apaixonado por si mesmo, ele não percebia ninguém mais e se julgava a imagem de um Deus.
 
A lenda continua quando a ninfa Eco se apaixona por Narciso e é ignorada por ele, que só tinha sentimentos por si próprio. Tomada de amor, a ninfa definha, até desaparecer, tornando-se apenas um murmúrio.
 
Os deuses, inconformados com a postura de Narciso, levam-no a debruçar-se sobre uma fonte de água e, ao ver refletida a própria imagem, ele fica completamente apaixonado e, assim, paralisado até morrer.
 
O que incomoda em Narciso – e o que é realmente importante – é a indagação sobre a relação entre nós e os outros, e também aquilo que em nós é cego e perigoso, quando olhamos para nós mesmos. Quem não se lembra de Caetano Veloso,  em “Sampa”, quando diz: 
 
Quando eu te encarei
Frente a frente
Não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi
de mau gosto o mau gosto
É que Narciso acha feio
o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda
Não é mesmo velho
Nada do que não era antes
quando não somos mutantes.
Todos já estivemos diante daquela pessoa arrogante, vaidosa, que não admite ser questionada e com a qual o diálogo é demorado e até perigoso. Poucos de nós já perceberam pessoas assim em si mesmas ou sequer imaginaram que podiam ser assim. Verdade ou não?
 
E é aí que os espelhos são importantes, a arte, a cultura, porque são os espelhos que nos mostram quão parecidos e diferentes somos de nossos deuses.
 
Mas existe outro espelho que estará sempre em frente de nossa face, para onde quer que nos viremos: o comportamento dos outros em relação a nós. Não podemos escapar dele. Os outros nos dizem quem nós somos!
 
Narciso (1594 - 1596), por Caravaggio
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*Estudioso de psicanálise e crítico de arte e cultura

 




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