Pais violentos, filhos o quê?

Exemplos dados pelos pais têm efeitos na formação da personalidade das crianças e dos adolescentes, tanto positiva quanto negativamente. Especialistas chamam a atenção para os detalhes.

Criado em 24 de Julho de 2019 Capa
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Iêva Tatiana

O telefone toca, e a mãe pede ao filho para dizer que ela não está. A filha encontra um objeto perdido, e o pai não insiste para que ela devolva. Os pais são viciados em junk food, mas exigem que as crianças comam legumes e verduras. Todas essas situações, muito comuns em nosso dia a dia, talvez pareçam inofensivas quando listadas em poucas linhas ou analisadas isoladamente, mas, na prática, podem gerar vários problemas na formação da personalidade dos filhos.

Segundo a psiquiatra da infância e da adolescência e secretária do Departamento de Psiquiatria Infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Ana Christina Mageste, aquele velho ditado “a palavra convence, mas o exemplo arrasta” é verdadeiro, porque é justamente nas ações rotineiras que estão as maiores lições para os jovens, sobretudo na fase em que a consciência do certo e do errado e do pode e do não pode está começando a se desenvolver, por volta dos 4 ou 5 anos.

“Nessa idade, a criança já distingue os ensinamentos, internaliza o que falamos com ela. A consciência propriamente dita, ela passa a ter aos 6 ou 7 anos. A essa altura, se uma pessoa próxima morre, por exemplo, já é possível entender que ela foi embora e não vai mais voltar”, diz Ana Christina.

Por essa razão, uma das situações mais delicadas e preocupantes nesse estágio é a dos filhos que testemunham episódios de violência doméstica. De acordo com a psiquiatra, tais cenas são muito pesadas, difíceis de lidar e exigem um cuidado ainda maior na abordagem, porque é bastante comum as crianças negarem ter visto alguma coisa, por medo de represálias ou do que poderá acontecer com o agressor – já que, muitas vezes, existe uma relação de afeto com ele.

Pensando-se em longo prazo, as agressões físicas e verbais presenciadas pelos filhos podem ter um efeito ainda mais nocivo: o de formar novos adultos violentos. “Isso aumenta as chances de termos uma pessoa com dificuldades nas relações pessoais e na vida afetiva. Normalmente, o menino torna-se um homem agressivo, porque ele já viu isso acontecer em casa sem o menor problema. É algo que foi banalizado para ele, principalmente quando não há denúncia”, ressalta a psiquiatra.

Lares violentos

Esse tipo de mau exemplo é ainda mais alarmante diante das estatísticas apresentadas pela Secretaria de Estado de Segurança Pública de Minas Gerais (Sesp-MG). Somente nos últimos três anos, foram registrados mais de 437 mil casos de violência doméstica e familiar contra mulheres em todo o Estado – 2.241 por dia. 

Na Região Integrada de Segurança Pública (Risp) 2 – que inclui Betim e outros municípios da região metropolitana de Belo Horizonte –, o número de vítimas chegou a 36.402 no mesmo período. De 2016 para 2018, houve um aumento de 4,66% nos registros, conforme divulgado pela Sesp-MG. Embora não haja um recorte desses dados que indique em quantos casos havia a presença de crianças, sabe-se que elas estão em muitos deles.


A titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Betim, Ariadne Elloise Coelho, chama a atenção para o impacto que essas ocorrências provocam e ratifica a avaliação da psiquiatra da ABP.  “A violência contra a mulher atinge a família toda, sobretudo as crianças. Cria-se uma situação de trauma, e, às vezes, elas nem sabem explicar o porquê de terem determinados tipos de comportamento. Os pequenos se acostumam ao meio violento e tendem a achar que ele é natural. Veem o pai agredindo a mãe e começam a replicar aquilo no dia a dia, seja chutando um cachorro na rua, seja batendo no coleguinha da escola”, enfatiza a delegada.

Pela experiência profissional, Ariadne afirma que é preciso haver, acima de tudo, uma mudança cultural, para que esse contexto violento deixe de ser tratado como algo normal e possa ser combatido, especialmente entre os jovens que ainda estão na fase de desenvolvimento da moral e do caráter.

Outro aspecto destacado pela delegada é a importância de os pais ou outros responsáveis legais – “não trabalhamos mais com o formato de família de comercial de margarina”, ela salienta – dedicarem um tempo maior e de qualidade às crianças.

“Hoje, vivemos uma situação problemática de não haver diálogo, de não se transmitir confiança aos filhos. Percebemos que, mesmo quando não há ameaça direta, os jovens vítimas de abusos sexuais têm medo e vergonha de relatarem o que aconteceu. É preciso conversar e explicar que eles não podem ser tocados e que, se isso ocorrer, devem contar sem se sentirem culpados”, diz Ariadne.

Problemas contemporâneos

A questão dos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes passa também pelo acesso à internet, uma janela de múltiplas possibilidades que merece atenção especial dos responsáveis. A psiquiatra Ana Christina lembra que, até certa idade, os jovens não têm maldade para policiarem o que falam e acabam repassando informações pessoais a pessoas mal-intencionadas. “Em nosso mundo conectado, temos que ter ainda mais cuidado com a pedofilia. É preciso orientar e vigiar”, pontua.

E, por falar em tecnologia, a médica aponta outra cena comum de se ver, hoje em dia, e que tem gerado sérios problemas: a iniciação precoce no mundo digital. De acordo com a psiquiatra, entregar tablets e smartphones nas mãos de crianças muito pequenas é um erro cometido pelos pais – muitas vezes, na intenção de acalmar e/ou distrair os filhos – que tem causado dificuldades de convívio social e familiar.

O efeito observado é o de crianças muito agitadas e até com diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), que pode resultar em baixa autoestima, relacionamentos problemáticos e problemas na escola. A recomendação dos pediatras é para que até os 2 anos seja evitado esse tipo de distração.

“Crianças de 10 a 12 anos devem ficar, no máximo, duas horas por dia com eletrônicos. Acho um absurdo ver bebês mexendo em tablets. É nessa fase que eles aprendem a falar e a interagir com outras crianças. Os pais podem até colocar a ‘Galinha Pintadinha’ para os filhos assistirem, o que é diferente de deixá-los por conta de joguinhos nos aparelhos”, exemplifica Ana Christina.


Dois extremos

Os excessos na criação dos filhos também podem atrapalhar mais do que ajudar. Errar a mão na dosagem da proteção, por exemplo, é um dos caminhos que levam a criança a se sentir insegura e dependente dos pais, sem autonomia para fazer as próprias escolhas, conforme apontado pela psiquiatra da ABP. Ficar muito em cima e ser severo demais resultam em medo de repreensão e em receio de conversar. “E tem situações que exigem diálogo. O pai e a mãe têm que estar ali para ouvir, mas sem parecerem coleguinhas. É importante dar liberdade, não libertinagem”, alerta a médica.

Já a ausência de controle dos pais que deixam os filhos muito livres pode ser ainda mais danosa, na avaliação da psiquiatra, porque leva à falta de educação e de limites, bem como à falsa ideia de que é possível ter tudo o que se quer. “É muito importante que as crianças tenham horários para dormir, acordar e almoçar. Uma hora antes de se deitarem, devem parar de mexer com eletrônicos para se evitarem distúrbios do sono e, consequentemente, do crescimento”, elenca Ana Christina.

Brincadeira séria

Em Fortaleza (CE), no Nordeste brasileiro, o humor tem sido um importante aliado no combate à violência doméstica há quase quatro décadas. Desde 1981, quando foi fundada, a Associação dos Homens e Mulheres Mal-Amados do Estado do Ceará busca acolher pessoas que foram traídas em relacionamentos amorosos e mostrar que a agressividade não é resposta para nada.

Segundo o presidente, José Maria Nascimento (mais conhecido como Zé Maria), a entidade tem, hoje, aproximadamente 35 mil associados no país, todos devidamente registrados e com carteirinhas. Para quem se pergunta qual a vantagem em ser assumidamente traído, ele lista algumas: sessões com psicólogo a preço popular (R$ 50), descontos em reboque de veículos, em clínicas médicas e em lojas de autopeças, calçados, artigos infantis e baterias.

Em troca desses benefícios, a associação cobra uma mensalidade de R$ 4,99. Ela também disponibiliza o “Disk Corno” para quem quer desabafar ou até mesmo precisa de uma carona para sair ou voltar para casa.

“O intuito é mostrar que os homens podem até ser traídos, mas não têm que ser violentos nem matar mulheres por isso. Eles podem muito bem se separar e seguir a vida ou perdoar e continuar a relação”, afirma Zé Maria, ressaltando que agressores não são bem-vindos ou sequer aceitos no grupo.

Tática astuta

A fim de preservar a identidade dos associados e de evitar constrangimentos e situações embaraçosas com homônimos, a associação trata todos por apelidos, conforme informado pelo presidente. Outra estratégia destacada por ele é a abordagem, que precisa ser sutil. “Tenho que me apresentar como um corno, como o presidente que sou. Aí, a pessoa traída se identifica comigo. É ela que tem que se acusar, entregar-se e me contar a própria história. Não posso obrigar ninguém a falar; precisa ser algo espontâneo”, pontua.


Apesar de existir há 38 anos na capital cearense, a associação ainda é vista por muita gente como uma brincadeira, mas Zé Maria garante que a sátira – que já começa no nome – é apenas uma ferramenta para quebrar a cultura machista que ainda existe na sociedade: “Eu não posso chegar sério, tenho que fazer a abordagem com humor. Depois é que a pessoa vai entender a seriedade da iniciativa”.




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