Para além da arte

Capa | ARTISTAS DE RUA

0
Criado em 14 de Maio de 2015 Capa

Fotos: Hilário José

A- A A+
Eles fazem das vias e praças das grandes cidades seu verdadeiro palco e, muito mais do que divulgarem seu trabalho e obterem algum lucro, os artistas de rua anseiam por promover um encantamento no público que os assiste
 
Daniele Marzano
 
O REENCONTRO COM A REPORTAGEM – já não escrevia há algum tempo – tem sido mágico e revelador. Depois de ter me encantado com as formosuras de cachorros da edição de abril, na qual revelamos os primeiros colocados no concurso que elegeu o pet mais queridinho de Betim e região, agora me emociono com as irreverentes histórias de vida e de luta pela liberdade e pelo amor à arte que encontrei nas ruas de Belo Horizonte e de cidades da região metropolitana. Os responsáveis por minha emoção? Artistas que fazem das
ruas e praças seu palco de apresentação. Mas, afinal, quem são essas pessoas? O que desejam? Sobrevivem desse trabalho? É isso que fomos descobrir. E que me perdoem os que aqui não foram retratados. Nossas páginas têm limite, diferentemente do que o futuro reserva para a bela arte que cada um de vocês certamente produz.
 
A MULTIFACETADA TALITA
Além de já ter nome de gente famosa, nossa primeira entrevistada e que figura a capa desta edição, Talita Barreto, de 19 anos, é uma artista completa. Ela compõe, canta e toca vários instrumentos, dentre eles violão, flauta, cavaquinho e até berimbau. A música chegou à sua vida desde cedo, por influência do pai e dos irmãos, mas, há três anos, o sonho de se tornar profissional começou a falar mais alto, e Talita decidiu estudar música. Atualmente, a garota, que mora com a família, no bairro São Geraldo, na capital mineira, faz um curso técnico, mas deseja ir além e sentar nos bancos de uma universidade. “Quero me tornar professora de música e aprimorar minha técnica”, revela a cantora, compositora e instrumentista.
 
A multifacetada artista conta que desenvolvido um trabalho voltado para a cultura popular brasileira, explorando ritmos regionais e afrobrasileiros, a poética urbana, popular e mineira e o papel da mulher negra em nossa sociedade. Talita ainda não conseguiu exibir seus dons musicais para grandes públicos – ela se apresenta em saraus realizados nas ruas de Belo Horizonte, – mas já define a arte como a expressão de sua própria vida. “Além de poder ser apreciada, a arte dispõe de um poder comunicador forte, capaz de transmitir valores importantes para a evolução do ser humano”.
 
MALABARISMO TEATRAL
Assim também pensam os irmãos chilenos Cristobal e Jose Maria Quiñones, malabaristas que aliaram a acrobacia de bastões à arte da interpretação. Os artistas, naturais de Santiago, no Chile, chegaram a Belo Horizonte há pouco menos de um mês. Cristobal, o mais velho, de 26 anos, formou-se em administração pública e chegou a trabalhar para o governo da capital chilena. O irmão, Jose Maria, de 18 anos, terminou o ensino médio e resolveu acompanhar o irmão em sua “nova vida”. Cristobal conta que detesta rotina. Por isso,
junto de sua namorada, Paula, e, agora, de seu irmão, após ter abandonado a estabilidade profissional e o conforto de um lar, seguiu em busca da liberdade. “A vida passa muito rápido. E temos de ser felizes durante o tempo que estamos aqui. Para que ter dinheiro se não há tempo nem condições para gastá-lo?”, questiona. Para sobreviverem fazendo algo de que gostam, os irmãos criaram uma minipeça
teatral para incrementar seu malabarismo, a espetáculo que apresentam em sinais da região centro-sul de BH. “Gostamos de ver as pessoas sorrirem. E consideramos importante levar aos espectadores uma mensagem positiva. Pensamos: enquanto mexemos os braços e as pernas tentando equilibrar os bastões, podemos transmitir algo de bom a quem assiste ao show”, explica Cristobal, que assegura: “muitas vezes, o retorno positivo que recebemos de algumas pessoas vale mais e nos deixa mais contentes do que o dinheiro que conseguimos arrecadar”. 
 
FOGO ENCANTADOR
Leandro Silva Nunes, de 23 anos, também sobrevive da arte do malabarismo. Mas seu diferencial, segundo ele próprio afirma, são o fogo e o equilíbrio de quatro bastões – a maioria de seus colegas de profissão, de acordo com ele, executa o movimento utilizando apenas três desses objetos, que são fabricados por ele mesmo. Leandro identifica esse encantamento do público com a manipulação do fogo na ponta dos bastões nos elogios que recebe assim que termina o espetáculo e passa de carro em carro para tentar ganhar algum dinheiro. “Acredito que o fogo encanta mais as pessoas”, orgulha-se o artista, que mora, com a esposa e dois filhos, em Contagem e
trabalha em Betim, na avenida Marco Túlio Isaac, no sinal próximo ao Centro de Especialidades Divino Braga.
 
O malabarista se apresenta por cerca de oito horas diárias em seis dias da semana. “Deixo para descansar na segunda, pois percebo que, nos fins de semana, o público está mais alegre e, consequentemente, mais receptivo”. Para além de obter o sustento dos filhos, ele está ali porque gosta do que faz. “Estudei até o ensino médio e atuei no ramo da metalurgia, mas um dia vi uma pessoa equilibrando bastões no sinal, fiquei admirado e resolvi parar e observar. Em quatro meses, estava fazendo igual. Hoje, acho que faço muito bem”, declara Leandro, que ainda revela já ter trabalhado em circos pequenos e recebido convites para acompanhar alguns grandes. “Preferi ficar perto da família e trabalhar sozinho”, finaliza.

 
ORÁCULO
Enquanto os irmãos chilenos se utilizam do teatro para transmitir uma mensagem positiva a seus espectadores, a estátua viva Leandro Albano, de 35 anos, exibe, em seu próprio corpo, materiais reciclados por ele próprio e que traduzem sua luta por um mundo melhor, mais sustentável. E é portando itens como tampa de lixeira, base de computador, sirene, mangueira de piscina e carenagem de motocicleta que Leandro prepara seu figurino de apresentação e segue, quase todos os domingos, para a Feira Hippie, em BH, onde permanece andando entre 9h e 14h. No local, a estátua de nome Oráculo faz tanto sucesso que já recebeu vários convites para participar de eventos e festas de aniversário. “De todas as estátuas vivas que você encontra na feira, por exemplo, acredito que eu seja a que mais interage com o público, e isso atrai o público”, conta, satisfeito.
 
Não é à toa que o tema reciclagem permeia as performances de Leandro pelas ruas da capital. É que, nos outros dias da semana, ele atua numa cooperativa da cidade de Itaúna, a Coopert, parceira do Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (Insea), que presta serviços, em todo o Brasil, no segmento de coleta seletiva. “Fazemos palestras e apresentações teatrais com o grupo Mobilizasim, abordando o tema reaproveitamento do lixo. Embora não tenha chegado ao ponto em que desejo, pois a cada dia tenho me aperfeiçoar, minhas performances como Oráculo têm enriquecido muito meu dia a dia, me feito refletir sobre as atitudes das pessoas. “O que a própria cidade descarta como lixo devolvemos como arte”, diz
Leandro, que sonha estudar artes. “Eu me identifico com várias de suas facetas. Tanto que admiro muito um poema de Fernando Pessoa: "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos", conclui.
 
RAIZ SERTANEJA
Ora em frente ao Mercado Municipal, a sós com sua sanfona, ora na Praça Sete, ao lado do parceiro de dupla Zé Moreira – que toca viola –, carregando o nome artístico Serenito, Antônio Pereira da Costa, de 61 anos e morador de Betim, diz que tem a música como paixão e ofício já faz 38 anos, tendo sempre se apresentado em bares e locais públicos. Mas, há algum tempo, resolveu se arriscar numa carreira a dois para exibir sua arte e divulgar seu trabalho. Assim, divide a semana entre a companhia da sanfona e a do pedreiro que virou violeiro. “A dupla é recente. Estamos ensaiando ainda”, diz Seu Serenito, que nos revela sua escala de trabalho: às terças, quartas e quintas, compõe a dupla sertaneja, na Praça Sete, e, nos fins de semana, faz carreira solo em frente ao Parque Municipal (Augusto de Lima com Curitiba), sempre por volta das 9h às 14h. Tocando o sertanejo de raiz, Serenito já gravou três CDs, tendo o primeiro canções de sua autoria. "O quarto trabalho será da dupla Zé Moreira e Serenito", adianta.
 
A IRREVERÊNCIA DO VARAL
A reportagem descobriu também outra dupla criativa. São os irmãos Danilo e David Nascimento, que exibem suas criações – Danilo, de 28 anos, fotografa paisagens e David, de 18, pinta pessoas, animais e figuras em aquarelas ou com nanquim – num varal, irreverência que atrai os olhares de quem passa. A dupla talentosa mora no Barreiro e gosta de expor seu trabalho na Praça da Liberdade, nas tardes de sábado. David conta que a ideia surgiu da vontade de chegar a um ambiente novo e ter o impulso-oportunidade de poder principiar sua vida artística. “Eu preciso mostrar que o que eu produzo é contemporâneo. E o contemporâneo é praça, rua, bairro, avenida, varal, vento e desconforto. Contemporâneo é acesso. Pode chegar a quem quiser, para sentar, prosear, ter contato. A arte é isso, a arte é todo mundo junto”, explica o jovem pintor, que sonha se profissionalizar estudando artes plásticas.
 
 
Danilo, que é casado e tem uma filha, acredita que a exposição em forma de varal chama a atenção porque permite que o público se
aproxime da arte ali exposta. “Queremos que as pessoas se sintam em casa, que possam apalpar e ver de perto nosso trabalho”, diz
o irmão mais velho, que tinha como hobby a fotografia, mas, há algum tempo, deixou crescer e tomar forma a paixão pelo jogo de luz e
sombra que essa expressão artística enseja: o engenheiro pensa em se enveredar profissionalmente para esse ramo.




AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.