ROQUE SANTEIRO

Cultura

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Criado em 17 de Julho de 2015 Cultura
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Por Domingos de Souza Nogueira Neto*

“Dizem que Roque Santeiro, um homem debaixo de um santo
Ficou defendendo o seu canto e morreu
Mas sei que é ainda vivente na lama do rio corrente
Na terra onde ele nasceu.” (Sá e Guarabyra)
 
São memórias confusas as que eu tenho, de causas diversas e que mal se conectam no tempo e no espaço. Em comum, a barbárie, a incompreensão, o ensandecimento e o apelo ao fundamentalismo, ao dogmatismo e à barbárie.

Minha primeira lembrança sobre a matéria foi o ataque de 21 de maio de 1972, quando um enlouquecido húngaro chamado Laszlo Toth pulou um grande altar na Basílica de São Pedro e deu 12 golpes de martelo na escultura Pietà, de Michelangelo, danificando severamente a obra-prima do Renascimento. Na minha cabeça de criança de apenas 13 anos, era impossível entender por que
alguém destruiria uma obra tão linda.

Depois daquilo, vi evangélicos chutando imagens de santos da Igreja Católica, fundamentalistas destruindo estátuas de diversas  culturas, que sobreviviam à inclemência do clima dos desertos desde tempos remotos. Isso para citar apenas os exemplos que vagueiam, fantasmagóricos, por minhas memórias e contornando, por razões de segurança, outras lembranças ainda mais terríveis.

Lembro-me também, com ternura, de minhas viagens pelo nordeste do Brasil, pelo interior de Minas Gerais e por toda parte onde estive, da figura do santeiro, com ferramentas muitas vezes rústicas, esculpindo em pedra e madeira as imagens de deuses e santos de diversas culturas e religiões. Pessoas simples, que se sustentam dessa arte, tão antiga como o homem, trazendo recursos e turistas para a região onde vivem.
 
Quando um artista representa a imagem de seus deuses ou santos, através de uma obra de arte, expressa nisso seus sentimentos,
a cultura da comunidade em que está imerso, e esse artífice é uma pessoa plena de sensibilidade. Esse trabalho é, então, do ponto de vista do autor, sempre verdadeiro e vazio de qualquer intenção profana. Destruí-los ou ameaçar aqueles que os realizam, partindo do pressuposto de que aqueles que o fazem detêm uma única fé verdadeira, já seria, sob esse prisma, uma barbaridade sem sentido.

Ocorre também que as imagens religiosas, de todas as religiões, consideradas sob as óticas da história e da antropologia cultural, mostram como a cultura humana evoluiu, desde as cavernas até a atualidade, sendo esse referencial fundamental para que se entendam adequadamente as relações de trabalho, assim como as questões de gênero e de raça. Destruir nossos referenciais históricos seria apostar na escuridão de nossa leitura sobre nós mesmos no mundo. 

Há ainda uma questão mais simples, que é a leitura da intolerância, do preconceito e da violência para tratar aqueles que pensam, vivem ou atuam de formas diversas daquela que consideramos corretas. Somos, então, os senhores da verdade, e aqueles que são diferentes devem ser julgados e condenados. Bem, se todos pensassem assim, pode ser que hoje eu fosse o juiz e o carrasco, mas, mudadas as coisas, superada a minha razão, nada impediria também que outros me julgassem e condenassem. E, não havendo diversidade legitima, haveria um mundo bárbaro, em que somente pessoas ou grupos mais fortes seriam os detentores da razão. O resto? Seria provavelmente eliminado.

Existem inúmeras religiões, outras tantas subdivisões de religiões, em comum, todas têm fiéis alimentados pela crença firme de que são os detentores da fé verdadeira e da iluminação divina. Para cada uma das religiões, os crentes das demais são hereges, mal-informados e serão, certamente, julgados pelos deuses verdadeiros aos quais terão que prestar contas. Mas, até aí, vá lá!

O problema é quando os crentes de determinadas religiões, agindo a pretexto de que estariam comandados por Deus, começam a atacar e a destruir as obras e as pessoas, além de ameaçar até as crenças das pessoas das demais religiões. Tenho que dizer uma coisa: ao fazerem isso, não estão agindo em nome de Deus, mas tomando o lugar Dele; na verdade, sentem-se, sem dúvida, o próprio
Deus! E isso é uma doença, não um ato de fé. Vou além: para matar e destruir, basta uma criança, um idiota, um bárbaro ou mesmo um louco. Mas, para entender, perdoar e cativar, é preciso humanidade. Para criar a beleza, é preciso um artista. E, para conceder a imortalidade, é preciso um Deus!

Concluo refletindo que, se existir um Deus, criador do universo, onipotente, onisciente, onipresente, certamente Ele será a presença mais generosa, piedosa, paciente, bem-humorada e plural que se possa cogitar; do contrário, já teria destruído a raça humana há muito tempo, por diversas razões. Um Deus verdadeiro não designaria carrascos, soldados, nem surtados, porque não precisa deles para nada, porque lhe bastaria seu próprio poder. Ele não perderia tempo com brincadeiras e caricaturas, não quebraria estátuas nem mesmo cortaria quadros. E mais, o Deus que fala aos meus sentimentos, enxergando uma criança amarrada a uma bomba, prestes a explodir tudo, a transportaria para um recanto tranquilo, dar-lhe-ia uma madeira e um canivete, e ensinar-lhe-ia a esculpir um santo, ainda que não acreditasse nele. 
 
* Crítico de arte, professor de judô, estudioso de direito,
filosofia, sociologia, história e psicanálise

 




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