Rumo a Lapinha da Serra

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Criado em 15 de Outubro de 2012 Pé na Trilha
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Dentro de uma Kombi azul, a família Scafutto se aventurou pelas estradas da serra do Cipó e descobriu um vilarejo encantador, que ficou em seus corações para sempre
 
“Nenhuma família é verdadeiramente normal, mas a família Hoover extrapola. Durante três dias, eles deixam todas as suas diferenças de lado e se unem para atravessar o país numa Kombi amarela enferrujada”. Essa é a sinopse do filme “Pequena Miss Sunshine”, e quem conhece a comédia vai se identificar muito bem com a história que eu vou contar. Só que, em vez de uma Kombi amarela, acabei me aventurando em uma azul. Eu e minha família resolvemos viajar para Lapinha da Serra, um vilarejo próximo à serra do Cipó, no Carnaval de 2005.
 
No mesmo ano da viagem, compramos uma Kombi azul, que, com um toque bem charmoso, acendia uma luz verde nos bancos de trás. Resolvemos, então, reunir alguns amigos que tinham uma veia aventureira. Éramos 11 pessoas, mas somente
três já conheciam o lugar: eu, meu marido e meu filho. Seriam 170 quilômetros, sendo 40 em estrada de terra. Nosso destino era um paraíso que esbanjava beleza e carecia de um mínimo de infraestrutura. Diante disso, levar tudo que precisávamos era uma necessidade premente: de caixas de fósforo a colchões, de pães de forma a galão de gasolina. Como na localidade há uma exuberante lagoa, resolvemos colocar também, na Kombi, dois caiaques, que se equilibravam na parte de cima do automóvel, junto aos colchões. Eram tantas as tralhas dentro e fora do carro que mal podíamos nos mexer. A partida foi em Betim, e, além de minha família, uma amiga de minha filha também se animara a fazer parte da trupe. Passamos em Belo Horizonte para pegarmos minha prima e uma sobrinha, que, além das malas, levou seu violão, o qual ocupou ainda mais o espaço mínimo reservado aos viajantes.
 
 
Mesmo sabendo que havia um carro de amigos logo à frente com apenas dois passageiros, a trupe continuava seguindo embolada na Kombi, o que era, para nós, a representação da aventura que há muito gostaríamos de viver. 
 
Meu filho, sentado à frente, junto ao pai, que dirigia, comandava o cenário musical com um excelente rock in roll. Cantávamos o tempo todo, e a alegria ficava cada vez maior diante das belezas naturais que se descortinavam diante de nossos olhos.
 
Ao entrarmos na estrada de terra, o gênero musical teve de ser alterado, pois já é costume de nossa família, ao chegar a uma estrada off-road, cantar a música “O Pó da Estrada”, de Sá & Guarabyra. 
 
A Kombi, pela própria condição e, também, por estar com sobrepeso, não podia se deslocar a mais de 50 km por hora. Assim, a viagem transcorria com uma vagareza anormal em tempos de correria. Aproveitávamos para parar sempre que podíamos, a fim de contemplar a natureza e esticar um pouco as pernas, que ficavam cansadas naquela posição de desconforto. Em algumas dessas paradas, apreciávamos o lanche que havíamos levamos, sabendo das condições precárias da viagem. A estrada, esburacada e com muita lama, devido às chuvas daquela época, dava um toque de loucura, necessário em uma empreitada dessas. Aproximando-nos de Lapinha da Serra, havia uma subida muito íngreme. Na metade do morro, a Kombi parou, e tivemos de descer e empurrar o carro. Como já era noite, a emoção ficou ainda maior. Todos nós fazíamos o esforço preciso, mas acabávamos dando tantas gargalhadas que a dificuldade aumentava ainda mais.
 
Chegamos ao vilarejo depois de mais de nove horas de viagem. A iluminação, bastante precária, fazia com que a noite ficasse mais bela e agradável. A casa que tínhamos alugado era rústica, toda envidraçada, para que os moradores pudessem apreciar o paredão de pedra que ladeia a região. Essa montanha é tão maravilhosa que se tornou o cartão-postal da vila. Minha filha, a amiga dela e meu primo resolveram encarar a difícil missão de desbravar o pico chamado por todos de pico do Breu. Subiram a montanha de forma bastante aventureira, pois, em algumas partes, a subida exigia que eles se agarrassem às pedras. Quando eles chegaram lá, o esforço foi recompensado. A vista era de tamanha beleza que tiveram vontade de voar. Ficaram por lá durante um tempo, admirando a natureza, tão diferente daquela à qual estavam acostumados. A descida foi ainda mais difícil, pelo espaço íngreme e pela quantidade de pedras.
 
No dia seguinte, fomos passear pela vila e tentar conhecer um pouco mais a cultura local. Ficamos encantados com a diversidade linguística dos moradores. Usam um dialeto chamado nhangatu. Por isso, em alguns momentos, era difícil entendê-los. Mas conseguimos compreender a maior das histórias contadas por eles: a aparição de discos voadores naquelas redondezas. Como não acreditar nessas narrações se a maneira como são ditas é tão natural? É como se os ETs fizessem parte do cotidiano deles?
 
Não faltaram os gostosos banhos nas cachoeiras de água “cor de Coca-Cola”, muito comuns na região da serra do Cipó.
 
 
Como era época de Carnaval, algumas pessoas convidaram minha filha, a amiga dela e minha sobrinha para participarem do bloco intitulado Bloco da Lapinha. A amiga de minha filha aceitou logo, imaginando que elas iriam fazer parte de um bloco carnavalesco no estilo dos do Rio de Janeiro. Para a surpresa delas, era apenas um encantador aglomerado de pessoas que, preocupadas com a chegada do turista, pretendiam conscientizá-lo de que o lixo produzido não deveria ser jogado no chão nem, muito menos, nas cachoeiras. As três entraram na farra e cantaram junto com os outros:
 
“Quem falou que o Bloco da Lapinha não é limpinho? O Bloco da Lapinha é limpinho, sim, sinhô. Deixa a danada da língua do povo falar. Joga o lixo no lixo, por favor. Joga o lixo no lixo, seu doutor”.
 
Durante os quatro dias de aventura, não faltaram queda de energia elétrica, chuva torrencial, a galera nas cachoeiras, canoagem na lagoa, que embeleza mais o local, caminhadas por vários pontos importantes da região, além de visita a uma gruta onde há pinturas rupestres datadas de mais de 10 mil anos. 
 
A volta pra casa não foi tão animada, já que o paraíso ficava para trás. Mas, ao mesmo tempo, o encanto na alma permaneceria por muito tempo, tanto que, por anos seguintes, continuamos indo sempre para lá. E resolvemos criar mais raízes, comprando, naquele lugar, um terreno e construindo ali uma casa. 
 
A viagem aqui retratada conta muito mais do que um simples passeio cheio de aventuras. Ela foi o início de uma paixão por um lugar maravilhoso e o fim de um medo presente em muitas famílias: a distância entre pais e filhos que a adolescência, às vezes, traz. A partir dessa “loucura”, nós nos sentimos mais unidos, e, sempre que possível, as viagens são sonhadas e realizadas em conjunto, mas com uma diferença: a Kombi não pode mais nos acompanhar foi vendida alguns anos depois, infelizmente.

 




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