Semeando a vida

Famílias estão optando pelo plantio das cinzas de entes queridos junto a sementes e mudas para cultivar árvores e deixar a saudade desabrochar em forma de flores e frutos.

Criado em 12 de Outubro de 2016 Capa
A- A A+

Iêva Tatiana

Fazer uma nova vida germinar, crescer, florir e até dar frutos é a maneira que algumas famílias têm encontrado para lidar com a morte de uma pessoa querida. Dessa forma, elas transformam parte da dor em uma primavera particular e conferem outra dinâmica ao ciclo que nos rege: vida, morte e renascimento. Foi o que fez a aposentada Marly de Sousa Martins Pereira, de 69 anos. Em setembro de 2009, ela ficou viúva e optou por honrar a vontade do marido, o também aposentado Sérgio Luiz Martins Pereira, de 65, de ser cremado. As cinzas dele foram plantadas junto a uma muda de Callistemon spp, popularmente conhecida como escova-de-garrafa, uma espécie de árvore ornamental nativa da Austrália.

O local escolhido para cultivar a lembrança do marido – pai de seus dois filhos – foi uma fazenda da família dele em Rio Doce, município da Zona da Mata mineira, onde ele nasceu. Segundo Marly, a decisão de dar uma nova forma à vida e um sentido à morte de Sérgio não foi imediata, mas foi desabrochando aos poucos, à medida que todos se recordavam das coisas e dos lugares de que ele mais gostava. “Ele já havia manifestado a vontade de ser cremado e, depois, nós nos lembramos dessa fazenda. Uma prima dele separou uma muda da árvore. Lembro-me de que rezamos, e alguém disse algumas palavras no momento (em que as cinzas eram plantadas). Eu estava muito emocionada, e, se não tivesse fotos, estaria tudo apagado da minha memória”, afirma a aposentada.

História semelhante à de Marly foi vivida pela pedagoga Luciana Martins Lopes de Assunção, de 41 anos, após a morte do pai dela, Jones Lopes, de 76. Em agosto de 2001, o Dia dos Pais foi marcado pela despedida do patriarca da casa. “Apesar da idade, papai sempre teve uma cabeça bem aberta, gostava de novidades e, há muito tempo, já falava que, quando morresse, queria ser cremado. Naquela época, nem existia crematório em Belo Horizonte, mas ele via nos noticiários quando algum artista era cremado e falava sobre isso”, relembra a filha.

Depois de um velório curto, de cerca de duas horas – a família acreditava que uma despedida longa só aumentaria o sofrimento –, teve início o processo de cremação. As cinzas foram entregues alguns dias depois. “Ficamos pensando o que iríamos fazer com elas, e tive a ideia de plantá-las, pois ele amava fazer isso. Eu tinha algumas plantas em casa que ele havia me dado ou me ajudado a plantar. Jogamos uma parte das cinzas no jardim da casa dele, e o restante eu trouxe e coloquei em vasos”.

De acordo com Luciana, não foi realizada nenhuma cerimônia durante o plantio. Tudo aconteceu naturalmente. “Enquanto colocava as cinzas, eu me lembrava dele cuidando das plantas com carinho, adubando a terra. Sabia que onde ele estivesse estaria feliz”, diz. Mas um poema feito por Mercês Maria Moreira, ex-cunhada de Jones – que foi publicado em homenagem a ele em um jornal de Paraopeba, na região Central de Minas Gerais, quando ele faleceu – marcou simbolicamente a passagem do pai de Luciana.

 


 

Jones, meu cunhado

Somente as chamas puras, nada mais

Sobre teu corpo, sobre o coração!

Pinhas a transparência dos cristais,

O peso das estrelas e das rosas,

A firmeza dos bons e, por ser forte,

Ocultadas no poço da emoção

A limpidez das águas silenciosas

Que lavam atos, purificam vidas.

Águas brotando mesmo além da morte,

Amenizando as dores e as feridas.

Pungente é pressentir, em labaredas,

Teu coração ardendo, ao teu pedido

E, como em vida ardia, solidário!

Agora, as cinzas cobrem-te as veredas,

São espalhadas pelo teu jardim...

Longa história de amor correspondido!

Nada interfere em teu itinerário:

Se brilha o sol, não antecipa o fim,

E, se escurece, voam pirilampos

Iluminando o lúdico cenário,

Prendendo flores, pontilhando o véu

Que envolve o imponderável relicário

Como se fossem delicados grampos

Que a mão de um anjo despregou do céu.

O florear do luto

Para especialistas, encontrar maneiras de lidar com a morte pode ajudar a minimizar o sofrimento. “Estabelecer e cumprir alguns rituais pode organizar, oferecer alguma segurança, além de facilitar a expressão dos sentimentos. Plantar as cinzas após o processo de cremação é uma alternativa ao sepultamento. Cada pessoa encontra sua maneira, de acordo com sua história e sua cultura, de homenagear quem partiu. Não existe uma regra”, afirmam a psiquiatra, psicoterapeuta e tanatóloga Mariel Nogueira da Gama Paturle e a psicóloga Junia de Paula Drumond.

Mariel é fundadora da Sociedade de Tanatologa e Cuidados Paliativos de Minas Gerais (Sotamig) e coordenadora do Grupo de Atendimento a Enlutados (GAL) da Associação Médica de Minas Gerais ao lado de Junia. De acordo com elas, participar de um rito funerário – no caso, a cremação – facilita a conscientização da realidade e traz conforto e solidariedade aos que permanecem vivos. “Plantar as cinzas de alguém pode ser um ato poético. Apressaremos um pouco, talvez, depois da passagem pelo fogo transformador e purificador, a volta aos componentes minerais, que servirão de adubo e alimento para uma nova vida que brotará. Pode simbolizar um ato de uma linda entrega à terra, à nossa Mãe, à vida”, explicam.

Segundo Mariel e Junia, nada disso significa, porém, que não haverá sofrimento diante da perda de um ente querido. Sentimentos e sensações como tristeza, desamparo, entorpecimento e raiva são naturais no processo de luto, e expressá-los é uma etapa importante para a descoberta de uma nova maneira de se relacionar com quem morreu e com a própria vida. “Para lidar com a morte, o melhor é estar atento à presença dela. Estamos, a todo momento, vivendo e morrendo. A qualquer hora, podemos ir embora. Assim, o melhor a fazer é aproveitar a vida ao máximo”, concluem as especialistas.

Terra e água

Embora o plantio de cinzas ainda não seja muito comum em Minas Gerais – nem a cremação propriamente dita, em substituição ao sepultamento tradicional –, alguns crematórios já oferecem às famílias a opção de armazenarem as cinzas em urnas biodegradáveis, próprias para essa finalidade. Essas urnas são capazes de se dissolver na terra enquanto as raízes das árvores crescem.

De acordo com a responsável pelo crematório Parque Belo Vale, em Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte, Fernanda Morais, no local, são oferecidas urnas hidroecológicas, indicadas para o plantio ou para serem jogadas em rios e em mares sem agredir o meio ambiente. Desde que o crematório foi inaugurado, há cerca de dois anos, no entanto, poucas pessoas escolheram esse tipo de despedida. “Hoje, 80% (dos clientes) não aderem a essa forma de urna. Preferem a tradicional, de porcelana, madeira ou bronze. As famílias não optam muito por enterrar as cinzas”, informa.

 


 

Segundo Fernanda, nessas estatísticas é preciso levar em consideração, também, que, na comparação com outros Estados, Minas apresenta um perfil conservador, embora o cenário já aponte para uma mudança cultural. “A cremação na Grande BH já está bem-aceita, mas não tanto quanto em Curitiba e no Rio de Janeiro, por exemplo. Nesses locais, a ação é muito mais praticada. Mas aqui já está aumentando muito (a procura)”, pontua.

Conforme ela acrescenta, a escolha pela cremação é motivada, na maioria das vezes, pela liberdade que o procedimento proporciona. “No sepultamento, familiares e amigos ficam presos aos cemitérios de certa forma e, por isso, sentem-se na obrigação de voltar sempre, como no Dia de Finados. Na cremação, isso não ocorre, e é possível realizar a vontade da pessoa que morreu de ter as cinzas jogadas no mar ou até plantadas. Muita gente repete a frase bíblica: ‘Pois tu és pó e ao pó tornarás’”, conclui Fernanda.

Na região metropolitana, existem dois crematórios em operação atualmente: o Belo Vale, em Santa Luzia, e o Parque Renascer Cemitério e Crematório, em Contagem.

 


 

Floresta de memórias

Em Itapecerica da Serra, no interior de São Paulo, o plantio de cinzas deu origem ao bosque Paz e Vida, no Cemitério e Crematório Horto da Paz, que, hoje, conta com, aproximadamente, 300 árvores de várias espécies da Mata Atlântica.

A ideia foi plantada há cerca de cinco anos e acabou firmando raízes depois da grande aceitação das famílias. De acordo com o precursor do conceito de cemitério-jardim no Brasil e idealizador do bosque, o engenheiro Flávio Magalhães, de 90 anos, além de oferecer urnas ecológicas – feitas de fibras de coco, totalmente biodegradáveis – acompanhadas de sementes ou de uma muda, era preciso proporcionar um espaço para que as cinzas pudessem dar lugar a novas formas de vida. “Sempre propus trazer a natureza e o plantio de árvores em qualquer iniciativa minha. Temos muita área disponível. Então, poderemos adotar esse sistema por muito tempo ainda. E ele é muito interessante. As pessoas plantam flores junto e prendem orquídeas às árvores, tornando o local ecológico e ainda muito bonito”, relata.

Atualmente, quem visita o cemitério testemunha a transformação da morte em ipês amarelos e roxos, quaresmeiras e manacás. Nenhuma árvore tem a identificação das cinzas, e apenas os familiares reconhecem o local escolhido por elas no bosque. “Essa solução tem sido muito bem-aceita. Muita gente abandona outras intenções e segue esse caminho”, assegura Magalhães.

Palavra cultivada

O escritor brasileiro Jorge Amado morreu em 6 de agosto de 2001, em Salvador, na Bahia, e, atendendo a um desejo dele, a família optou pela cremação do corpo. O destino das cinzas também havia sido definido pelo baiano de Itabuna: o quintal da casa onde viveu com a esposa, a também escritora Zélia Gattai, à sombra de uma mangueira plantada pelo casal. Jorge Amado virou semente e poetizou a própria morte no dia em que completaria 89 anos. “Tudo que é bom, tudo que é ruim também termina por acabar”, já dizia Jorge Amado.




AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião de Revista Mais. É vedada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. Revista Mais poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.