Um alerta para a sociedade

Criado em 25 de Setembro de 2016 Conversa Refinada
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Perfil

Bernardo Luiz Fornaciari Ramos

Idade: 37 anos

Naturalidade: Belo Horizonte

Formação: graduação em medicina (UFMG), especialização em ortopedia e traumatologia (Hospital Mater Dei), subespecialização em ortopedia pediátrica (Hospital Pequeno Príncipe – Curitiba/PR)

Atuação: membro titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e da Sociedade Brasileira de Ortopedia Pediátrica, médico assistente da Rede Mater Dei de Saúde, preceptor do Serviço de Residência Médica da equipe de ortopedia e traumatologia da Rede Mater Dei Saúde.

 

Efigênia Dusk

Especialista em ortopedia pediátrica, o médico Bernardo Ramos conversou com a reportagem para esclarecer diversas dúvidas a respeito dos maus-tratos contra crianças e adolescentes, abuso que, de forma velada ou não, sempre acometeu famílias de qualquer parte do mundo. Infelizmente, segundo aponta o especialista, os dados disponíveis no Brasil sobre as ocorrências são inconsistentes, o que se deve a vários fatores, como falhas nos sistemas de registros, cultura da omissão e medo ou falta de conhecimento dos profissionais envolvidos no atendimento do público-alvo. Ainda assim, os números existens demonstram a gravidade do problema. Nos EUA, em 2009, foram feitas mais de 3 milhões de notificações de maus-tratos, envolvendo 6 milhões de crianças. Desse grupo, cerca de 1 milhão de casos foram confirmados. “Esse dado já assusta, pois, para caso confirmado, estima-se que dez podem não ser detectados”, afirma o doutor Bernardo. No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) sinaliza que 10% das crianças e dos adolescentes sofrem violência, o que representa 15 milhões de vítimas.

 

O que são maus-tratos?

Maus-tratos, violência ou abuso infantil podem ser entendidos como toda ação ou omissão, por parte dos responsáveis pelo cuidado da criança, que resulta em dano aos desenvolvimentos físico, emocional, intelectual ou social da criança ou do adolescente.

 

Quais são os tipos de maus-tratos?

Os maus-tratos se dividem em quatro categorias. A violência física é caracterizada pelo uso da força ou de atos de omissão praticados pelos pais ou responsáveis, com o objetivo claro ou não de ferir, deixando ou não marcas evidentes. São comuns murros e tapas, agressões com diversos objetos e queimaduras causadas por objetos ou líquidos quentes.
A violência psicológica refere-se a todo tipo de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito e punição exagerada. É uma agressão que não deixa marcas visíveis, mas marca por toda a vida. A violência sexual se caracteriza pelo abuso de poder, em que a criança ou o adolescente são usados para a gratificação sexual de um adulto, sendo induzidos ou forçados a práticas sexuais com ou sem violência física. E, por fim, a negligência, definida como todo ato de omissão do responsável pela criança ou pelo adolescente no sentido de não prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento.

 

Como os maus-tratos podem ser percebidos pelas pessoas?

Cerca de 30% dos casos de maus-tratos físicos apresentam-se com fraturas, e 70% das vítimas têm menos de 3 anos, enquanto até 50% estão na faixa de 0 a  12 meses. Esse dado é tão importante que, no Canadá, todos os atendimentos de crianças com idade de até 1 ano que apresentam fratura devem ser compulsoriamente levados ao serviço de proteção às crianças. Menos conhecidos são os índices de mortalidade e de sequelas produzidas pelos maus-tratos. Dados norte-americanos recentes mostram em torno de 1.700 registros de óbitos por ano. No entanto, estudos de controle localizados apontam que entre menos 50% e 60% dos casos de óbitos por maus-tratos não são registrados como tal.

 

Como essa questão tem sido tratada no Brasil?

Por aqui, os maus-tratos são um tema de crescente interesse. A repercussão de casos na mídia tem ajudado a destacar a importância com que devemos lidar com esse problema. Os casos da menina Isabela Nardone e do menino Bernardo, morto pelo pai e pela madrasta, ambos médicos, geraram mais do que comoção social. Eles possibilitaram uma reflexão sobre o tema e alertaram para a importância de um trabalho sério por parte das autoridades.

 

O que pode contribuir para o diagnóstico dos maus-tratos?

A anamnese, que é a história clínica da pessoa, a qual precisa ser colhida de forma minuciosa, clara. É essencial realizar um exame físico completo e atencioso. Notamos que, na maioria dos serviços, especialmente os de emergência, essa história é coletada apressadamente, com poucos questionamentos e dados anotados. O aspecto capital para o diagnóstico é a incompatibilidade entre a história relatada e a lesão existente. Esse fator associado à baixa idade (menos de 3 anos) aumenta, de maneira considerável, a possibilidade de ter havido maus-tratos.

 

Geralmente, quem são as maiores vítimas?

Existem muitos fatores que podem ensejar os maus-tratos, como crianças não desejadas, não planejadas; crianças de sexo ou aspecto físico diferente das expectativas dos pais ou com baixa capacidade intelectual; filhos criados por outras pessoas ou com pais distantes; filhos de outros relacionamentos ou filhos com “comportamento difícil”; outro grupo em potencial são os portadores de doença crônica ou de deficiência. É lamentável que pessoas tão frágeis, dependentes dos familiares, sejam, com frequência, alvo de ações físicas ou psíquicas contrárias à sua proteção.

 

Como podemos distinguir a violência de um acidente?

As lesões intencionais apresentam características próprias que as diferenciam das lesões não intencionais ou acidentais. Nos traumas não intencionais ou acidentes, os arranhões, as lacerações ou os hematomas vão surgir com maior probabilidade na parte da frente e descoberta do corpo ou em áreas de extensão e extremidades, como testa, queixo, cotovelos, palma das mãos, parte anterior de coxas e pernas. De maneira geral, devem-se levantar suspeitas de maus-tratos sempre que forem encontradas lesões que não são compatíveis com a idade ou com o desenvolvimento psicomotor da criança. Fraturas próximas das articulações são bem características de maus-tratos. Uma lesão típica de agressão é o descolamento da epífise distal do úmero em crianças com até 1 ano. Fraturas de costela têm incidência de 5% a 27% nas crianças vítimas de maus-tratos. Geralmente, são ocasionadas por trauma direto ou violenta compressão do tórax quando a criança recebe socos, pancadas ou é sacudida. São de alta especificidade nas crianças com até 2 anos de idade. Fraturas com traços oblíquos ou em espiral podem ser provocadas por torção e, especialmente no fêmur, são sugestivas de agressão. Fraturas de escápula e esterno são incomuns, mas altamente específicas de maus-tratos. Como nas fraturas de costela, são ocasionadas por trauma direto ou compressão violenta. Fraturas de mandíbula são mais frequentes nas agressões a crianças maiores ou adolescentes. Existem outros traços físicos capazes de sugerir maus-tratos, como a existência de cicatrizes de lesões anteriores e o número diversificado de hematomas.

 

Normalmente, quem são os agressores? E quais são suas características?

Dados da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência, de Curitiba (PR), indicam que o agressor mais frequente é a mãe (60%), seguida do pai (24%), do padrasto (5%) e dos avós (3%). É um dado, até certo ponto, curioso, pois o senso comum delega à figura masculina os atos de agressão no ambiente familiar. Essa estatística também aponta para o estresse psicológico materno como uma das justificativas mais recorrentes para agressões. A depressão pós-parto também integra a lista de justificativas. Essas pessoas têm baixa idade, são imaturas emocionalmente, sem suporte familiar adequado. Provêm de famílias com conflitos constantes ou história de violência, tendo sido, muitas vezes, maltratadas quando crianças. Demonstram baixa tolerância em relação às ações próprias da infância. Os agressores, em geral, apresentam desprezo por outros membros da família, como esposa, marido, pais etc. Com frequência, mostram-se violentos mesmo na presença de terceiros. Sentem necessidade de demonstrar poder sobre os demais integrantes da família ou outras pessoas. Alegam problemas como desemprego, dificuldade no trabalho, uso de álcool ou de outras drogas para justificar a perda de controle. Possuem distúrbios de comportamento ou doenças mentais. Mostram-se muito possessivas e com ciúmes da criança, evitando o contato social dela com outras crianças e adultos.

 

Como a criança vítima de maus-tratos se comporta?

Ela apresenta comportamentos e reações extremas, como passividade, silêncio ou isolamento. Em sentido oposto, agressividade, hiperatividade ou insegurança. O choro intenso é outra marca recorrente entre as crianças vítimas de maus-tratos, principalmente entre as menores. O terror noturno, difícil de ser percebido por pessoas fora do ambiente doméstico, é um traço associado à prática de maus-tratos. Desatenção ou queda no desempenho escolar, bem como alteração repentina no comportamento escolar, são outras evidências ligadas aos maus-tratos.

 

Como o profissional de saúde deve agir nesses casos?

Em casos de suspeita de maus-tratos, o profissional da saúde tem a obrigação legal  de fazer a notificação. Essa obrigatoriedade está especificada no artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual diz que “os casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”. Somente a suspeita é necessária para que a notificação seja realizada. Um erro frequente ocorre quando o médico quer “descobrir” quem foi o responsável pelos maus-tratos. O médico não está preparado, nem é sua função fazer isso.

 

Considerando-se isso, o médico pode ser responsabilizado por não notificar os casos de suspeitas de maus-tratos?

Sim. Por determinação do ECA, o médico pode ser legalmente responsabilizado pela não comunicação de um caso que, posteriormente, seja confirmado como de maus-tratos.

 

E se, por acaso, o médico notificar um caso que não se confirme, o que ocorre com ele?

Embora qualquer responsável possa querer acionar legalmente um médico por insatisfação ou entendimento de dano em qualquer natureza de atendimento, é pouco provável que a denúncia seja aceita. Primeiramente porque o médico agiu obedecendo a uma determinação legal. Em segundo lugar, porque sua ação foi em defesa de seu paciente, em suspeita de situação de risco à sua integridade física e psicológica. É importante ressaltar também que, nesse caso, não há quebra do sigilo profissional, visto que a suspeita de maus-tratos é de notificação obrigatória.

 

Qual a maneira mais adequada de enfrentar a situação dos maus-tratos contra crianças e adolescentes?

Com a criação de uma rede de proteção que envolva não só a área médica, mas também as de educação e de organizações civis e governamentais. E isso requer a capacitação de um grande número de pessoas, a criação de um fluxo efetivo de funcionamento e acompanhamento, controles frequentes de eficácia e disponibilização de dados. Alguns municípios já têm redes implantadas. Em Curitiba, a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência foi implantada em 2002.

 

Para finalizar, como os cidadãos podem denunciar?

No Disque-Denúncia nacional (0800-990-500), no conselho tutelar da cidade ou na autoridade policial e/ou Ministério Público. 




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