Um exemplo de ouro

Daniele Marzano

“Descobri o paratletismo através de uma organização local que levava aos deficientes físicos a oportunidade de praticarem esportes. Eu me inscrevi na natação apenas porque eu possuía um maiô e não podia pagar por um par de tênis. Quando cheguei em casa e contei a situação para a minha irmã, que era empregada doméstica, ela me doou o único par de tênis que tinha. No dia seguinte, eu pude me inscrever para o atletismo e, assim, dei início à minha carreira. Com a premiação na minha primeira competição, realizei um sonho de infância e comprei um iogurte que tanto desejava. Foi daí que entendi que, através do esporte, eu conseguiria realizar todos os meus sonhos”.

Esse emocionante depoimento é da corredora cega mais rápida do mundo, Terezinha Aparecida Guilhermina, de 37 anos, que muitos devem conhecer. Do que a maioria, com certeza, não sabe é que a atleta é betinense. Nasceu e morou na cidade até 2005, quando ela, com 26 anos, e a família – os pais e mais 12 irmãos – decidiram se mudar em busca de mais estrutura para o treinamento de corrida. Atualmente, Terezinha vive em São Caetano do Sul, Estado de São Paulo.  

A história de Guilhermina nos revela muita determinação. Seu desejo de vencer foi o propulsor de uma trajetória marcada pela superação de desafios. “Eu sempre quis ser a melhor do mundo em alguma coisa. Quando entendi que poderia correr, esse se tornou meu alvo, e desejei isso para a minha vida. A partir daí, construí todos os meus sonhos em torno disso. Essa é minha maior paixão, o que mais amo fazer”, afirma a velocista

A DEFICIÊNCIA VISUAL

A atleta nasceu com retinose pigmentar, doença congênita que afeta as células que captam luminosidade na retina. Durante sua infância e sua adolesência, a perda da visão superava 95%, o que permitia a Terezinha correr com certa liberdade, enxergando apenas borrões. “Mas já não era fácil desse jeito, pois eu trombava muito nas coisas”, conta ela, que, depois de um tempo, passou a não enxergar nada. “Precisei entender que, para continuar fazendo o que mais amava fazer, teria que me adaptar, e essa parte não foi fácil. Tive que absorver a ideia de ter que correr com um guia ao meu lado e de tê-lo sempre, praticamente, o tempo todo comigo, em cada treino, em toda competição. Hoje, não é questão de precisar de um guia, é questão de depender de um”, desabafa.

Terezinha Guilhermina, que possui mais cinco irmãos com deficiência visual, compete, atualmente, na categoria T-11, destinada a atletas com visão desprezível ou nenhuma. Para isso, conta com o apoio de dois guias: os paulistanos Rafael Lazarini, que a atleta conheceu em Doha, no Mundial do Qatar, em 2015 –  a parceria foi oficializada no começo deste ano –, e Rodrigo Chieregatto, descoberto nos treinamentos diários e na fase nova de adaptação e de treinamento para a obtenção de novos guias.

As dificuldades impostas pelo problema de visão da atleta não a impediram de seguir, correndo de preferência, pelo caminho de luta, e também de muitas conquistas e vitórias. Como Terezinha relata, o esporte chegou à sua vida no exato momento em que ela, ainda garota, deparou-se, pela primeira vez, com obstáculos na vida profissional. “Eu havia terminado o segundo grau (hoje ensino médio) e não encontrei mercado para atuar”, recorda-se. Felizmente, tempos depois, ela descobriu que sua vocação estava no atletismo e, assim, literamente, passou a correr em busca de realizar seus sonhos.

Ainda bem. Do contrário, a velocista betinense não colecionaria hoje os títulos de tricampeã paraolímpica, de campeã mundial (oito vezes) e de campeã parapan-americana (nove vezes), bem como não deteria os recordes mundiais nas provas de 100m, 200m, 400m e revezamento 4 x 400m. Ou seja, a brasileira Terezinha Guilhermina é um dos mais importantes nomes do esporte mundial. Ela é tão especial que já teve como guia o velocista olímpico Usain Bolt, no evento Mano a Mano.

PARAOLIMPÍADAS RIO 2016

O poderoso repertório nas pistas não deixa Terezinha tranquila para mais um grande desafio que se aproxima: os Jogos Paraolímpicos do Rio de Janeiro, marcados para acontecerem em setembro. A corredora brinca que, desde que terminaram as últimas Paraolimpíadas, ela iniciou os treinos para as seguintes. “Costumo dizer que nosso treinamento para os próximos Jogos Paraolímpicos sempre começa após o término dos anteriores. Ou seja, nossos treinos para os Jogos Paraolímpicos Rio 2016 tiveram início ainda em Londres, em 2012”, reforça.

E, realmente, a rotina de treinamento da campeã é intensa. Terezinha diz que treina de segunda a sábado, entre quatro e sete horas diárias, de forma ininterrupta, descansando apenas no domingo. “Os treinos variam entre velocidade, força técnica, regeneração, academia com trabalhos de força, resistência, isometria, entre outros”, diz.

A atleta mostra que está fazendo sua parte para poder ouvir, ao fim de cada prova dos Jogos Paraolímpicos do Rio, o hino nacional e proporcionar aos brasileiros as conquistas desejadas, estabelecendo, quem sabe, novas marcas em seu histórico de vitórias.  E, como não poderia ser diferente, a expectativa dela de torcida em sua terra natal é grande. “Eu aguardo uma grande torcida e muita festa nos Jogos deste ano.
“Sempre acho que a torcida é para mim, e, agora, terei certeza de que será 100%”, brinca, orgulhosa.

INSTITUTO TEREZINHA GUILHERMINA

O exemplo de Terezinha segue além das pistas de atletismo. Formada em piscologia, a velocista criou, em 2014, o Instituto Terezinha Guilhermina, a fim de incentivar e fomentar o paradesporto, sobretudo o atletismo, para crianças, adolescentes e adultos com deficiência, dando atenção especial para as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

Localizado na cidade de Maringá, no Paraná, o instituto atende, hoje em dia, a dez pessoas de diferentes idades e deficiências. Entretanto, a meta, segundo afirma Terezinha, é expandir esse atendimento para outros lugares do país. 

COLORIDA E ALEGRE

Mais do que sua determinação, o que mais chama atenção em Guilhermina é sua alegria, geralmente estampada nos looks que elege para poder treinar e competir. Ela assume que isso faz parte de sua personalidade. “Para mim, compor um look é sempre muito importante. Apesar de não enxergar, gosto que as pessoas me vejam colorida e alegre, pois é assim que sou”, declara a corredora, que confessa ser vaidosa, “no sentido positivo da palavra”.

Mas, fora das pistas, ela não se preocupa apenas com a estética. Em suas voltas pelo mundo, Terezinha aproveitou para absorver cultura e conhecimento nos lugares que visitou. “Já estive em vários locais dos Estados Unidos, no México, na Grécia, na Espanha, na Alemanha, na Inglaterra, na Nova Zelândia, entre outros”, destaca a velocista, que, além do português, fala espanhol.

Com tantos compromissos no Brasil e no exterior, Terezinha admite que não sobra muito tempo para o lazer e a família. “Sempre que dá, tento ficar perto deles para passearmos e conversarmos. Afinal, família é tudo, o bem mais precioso que possuímos”, pontua.

OS GUIAS

O estudante de educação física Rafael Lazarini, 30 anos, iniciou sua carreira há apenas cinco anos, mas se destacou rapidamente. Em sua primeira experiência, nos Jogos Regionais de São Paulo, conquistou a primeira colocação nos 100m rasos, feito que repetiu em 2012 e em 2013. Além desses títulos, ele tem o de campeão dos Jogos Abertos (Santos) e o de terceiro colocado nos 100 e 200m rasos em 2014. Com esses resultados expressivos, Rafael foi convidado pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro a integrar o quadro de atletas-guia, fazendo parte da Seleção Brasileira de Atletismo Paraolímpico. A experiência já rendeu ao atleta a participação em três etapas do circuito nacional, em dois Opens e no Campeonato Mundial de Atletismo Paralímpico, em Doha, no Qatar, em 2015. Desde o início deste ano, ele passou a ser atleta-guia oficial de Terezinha Guilhermina e, assim, nas Paraolimpíadas Rio 2016, terá a missão de guiá-la ao lugar mais alto do pódio nas provas de 100m, 200m e no revezamento 4x100m.

Rodrigo Chieregatto, 23 anos, também estudante de educação física, é o outro guia de Terezinha. Diferentemente de Rafael, ele iniciou sua carreira esportiva cedo, logo aos 7 anos, praticando futebol e judô. Quando completou 15 anos, em 2009, conheceu o atletismo e se apaixonou. No ano seguinte, já conquistou o Campeonato Escolar Municipal (SBC), obteve o primeiro lugar escolar da Grande São Paulo e o segundo lugar no Estadual, todos nas provas de 800m rasos. O garoto também revelou um bom desempenho em sua primeira experiência como atleta-guia, quando venceu, na classe T12, a corrida Sargento Gonzaguinha (15 km). Com isso, Rodrigo passou a integrar o quadro de atletas-guia do Comitê Paraolímpico Brasileiro e, em 2016, começou a guiar Terezinha nas provas de 400m rasos, nas quais estará ao lado dela durante os Jogos do Rio.

E, para que o resultado dos três seja o esperado pela equipe, a rotina de treinos pesados, obviamente, conta com Rafael e Rodrigo sempre. Por isso, como frisa Terezinha, a relação dela com os dois precisa ser harmoniosa. “Nosso relacionamento é diário e deve ser de extrema confiança para que o resultado e a velocidade sejam algo que flua com naturalidade. O sincronismo e a amizade têm que ser sempre muito assertivos, pois fazem parte do dia a dia. A presença deles é fundamental para que eu possa oferecer o melhor de mim, a fim de que nós, como um time, possamos sempre alcançar os melhores resultados”, declara a atleta, que encerra a entrevista fazendo questão de ressaltar os componentes de sua equipe técnica: “Amaury Veríssimo, meu técnico de muitos anos e um dos maiores nomes mundiais quando o assunto é treinamento de atletismo, os fisioterapeutas Mauro, Gustavo e Daniel, e, fora das pistas, conto com a equipe da Union Sports Management, que gerencia minha carreira, em todos os aspectos, por meio do empresário Daniel Politzer”.

Que Terezinha, com o profissionalismo de sua equipe e o apoio da torcida brasileira, crave aqui, em nosso país, mais uma marca para compor sua brilhante e exemplar história de sucesso. Que vibremos por ela e por tantos outros atletas do Brasil!