Uma senhora mulher

Entrevista - Noemi Macedo Gontijo

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Criado em 10 de Outubro de 2013 Conversa Refinada
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Ela chegou a Betim na década de 70 com um ideal: melhorar a vida de famílias carentes por meio da educação e das artes. Seu projeto, em parceria com frei Stanislau Bertold, no início, oferecia sopa para saciar os famintos. Mais de 40 anos depois, ele é uma referência para o Brasil e para o mundo. Prestes a completar 90 anos, ela transpira, respira e inspira tudo o que acontece na obra. Apesar de não falar muito de si, dona Noemi Macedo Gonti jo conta sobre namoros, viagens e, é claro, o Salão do Encontro
 
Viviane Rocha
 
REVISTA MAIS – A senhora nasceu em Luz, no interior do Estado. Quando se mudou para Belo Horizonte?
 
Noemi Macedo Gontijo – A família Gontijo é imensa e veio de muitos lugares, como Luz e Bom Despacho. Mudei-me para Belo Horizonte quando eu já era formada no magistério. Fui a melhor das professoras. Dei aula e fui diretora em várias escolas em Belo Horizonte e em outros lugares também. Somente depois é que me mudei para Betim, na década de 1970.
 
Como era a cidade nessa época?
Era um verdadeiro nada. Quando eu vim para cá, só havia fazendas no município. Para você ter uma ideia, fui a primeira mulher a dirigir em Betim. Mas era complicado, eu tinha um Fusca, e as estradas eram apenas de terra.
 
As pessoas, principalmente os homens, deviam ficar muito assustados com isso, não?
Muito. Lembro que já dirigia em Belo Horizonte para poder trabalhar e, quando cheguei aqui, continuei agindo da mesma forma. Uma mulher dirigindo intrigava as pessoas.
 
Como descobriu Betim?
Meu pai tinha uma propriedade enorme perto do viaduto do Lapinha, no centro da cidade. Aquela região quase inteira era da nossa família. Ele falava que aqui era um lugar maravilhoso, onde tinha um riacho com águas muito transparentes e com muitos peixes. Hoje, adoro Betim, sou cidadã dessa cidade.
 
Com quem aprendeu o valor da solidariedade?
Aprendi com a minha avó a ajudar as pessoas mais pobres a serem felizes. Lembro que uma vez, durante uma conversa, minha avó pegou as minhas mãos e disse: “Goste sempre do pobre porque ninguém gosta dele”. Eu tive esse exemplo de gostar daqueles que praticamente todo mundo despreza. Até hoje os pobres são muito marginalizados. Por isso, queria fazer uma coisa que pudesse torná-los felizes. Essa felicidade tem de ser completa. A desigualdade social no mundo é uma coisa que sempre me feriu. Diante disso, pensei em fazer uma escola para as pessoas mais carentes que nenhum rico possui. Acho que aqui existe tudo para tentar fazer com que essas pessoas sejam mais felizes.
 
Como surgiu o Salão do Encontro?
Naquela época, fiquei muito amiga de dona Risoleta Neves (esposa do falecido Tancredo Neves, presidente eleito que morreu antes de tomar posse), que me doou esse terreno. Uma área de oito hectares. O espaço é tão grande que acabei utilizando apenas cinco hectares. Então, tive a oportunidade de conhecer um frei muito inteligente (Stanislau Bertold). Nós dois tínhamos o mesmo sentimento e a mesma vontade de ajudar as pessoas com problemas sociais mais graves. Nossa proposta era ajudar quem não tinha nada. As primeiras crianças eram muito carentes mesmo, não tinham comida direito, roupa, nem acesso à educação. Durante toda a minha vida, isso me preocupou bastante. Essas crianças queriam e precisavam de mais, e eu queria dar mais do que alimentação a elas. Desejava que elas tivessem uma visão do que é a vida e que tivessem uma profissão. O salão, hoje, já está nas mãos dessas crianças.
 
A senhora cuida de tudo muito atentamente?
Ah, a gente tem de cuidar. Até moro aqui para poder ficar mais perto de tudo. Já faz seis anos que vivo no Salão do Encontro. Fico aqui o dia inteiro, então, para que morar em outra casa? 
 
Fotos: Salão do Encontro/ Divulgação
 
Os alunos são a sua família?
Sim, eles são a minha verdadeira família.
 
Por que o Salão do Encontro é tão respeitado?
Porque é uma escola moderna, como nenhuma outra no Brasil. Aqui, os alunos têm a liberdade de escolher qual arte querem seguir. Eles, não necessariamente, têm a mesma convivência, o mesmo ambiente.Como disse anteriormente, o Salão é a escola dos pobres que nenhum rico tem.
 
Qual o principal valor que o Salão do Encontro oferece aos seus alunos? Como descobriu que esse método educacional é benéfico para as crianças?
Aprendi com os meus pais a fazer esses meninos descobrirem o seu próprio potencial. Eles eram grandes entusiastas da educação e também das artes.
 
A senhora é uma grande apreciadora das artes?
Não sou só apreciadora, eu vivi intensamente as artes. Trouxe para cá o que os meus pais me ofereceram.
 
Tem muito orgulho dessa história?
Na verdade, não gosto da palavra orgulho. Tenho é uma alegria muito grande com essa história.
 
Acha que após entrarem para o Salão do Encontro a autoestima das pessoas mais necessitadas melhorou?
Penso que até hoje as pessoas ainda não descobriram que a solução para erradicar a desigualdade social e a pobreza não é dar esmola, mas, sim, estimular o indivíduo a descobrir o seu potencial. Aqui já formamos muitos médicos, advogados, engenheiros, mas formamos, principalmente, grandes seres humanos.
 
Como era sua família?
A melhor possível. Meus pais (dona Josephina Macedo Gontijo era dona de casa e o senhor Francisco de Paula Gontijo Filho, fazendeiro) se amavam muito, eram pai e mãe de verdade. Eu era mais apegada ao meu pai. Tinha um carinho especial por ele e ficava sempre ao lado dele. Tive 11 irmãos no total. Todos eles se casaram e formaram família.
 
E a senhora formou a sua família?
Não, eu não me casei. Minha mãe percebeu que eu gostava de outras atividades e, por conta disso, ela me deu de presente a minha primeira viagem de volta ao mundo. Ela viu que eu tinha uma cabeça diferente e me incentivou muito. Viajei pelo mundo duas vezes. Na década de 1980, ganhei de presente a segunda viagem, que foi um prêmio do governo da Inglaterra. Foram mais de 300 pessoas com interesses sociais agraciadas. Essas viagens me acrescentaram muito. Lembro-me de uma viagem linda que fiz à Grécia, e também conheci o Brasil inteiro. Em todas as férias escolares, os meus pais me ofereciam um passeio e, lógico, o meu país não poderia ficar de fora.
 
Mas a senhora namorou?
Sim, namorei, inclusive, homens importantes. Um deles foi diretor de um dos maiores jornais de Minas. Mas o namoro acabou não dando certo. Lembro-me de que certa vez ele me disse que meu pai não permitiria nosso casamento porque ele tinha problemas com bebida. Também tive um namorado antes de vir para Betim, mas, quando me mudei para cá, deixei esse relacionamento para trás para me dedicar à obra.
 
Sua mãe chegou a lhe ensinar alguns trabalhos domésticos?
Não, eu nunca gostei de cuidar de casa. Ela percebeu que nasci para o mundo. Na verdade, minha mãe é que era uma excelente dona de casa.
 
O que gosta de fazer nos momentos livres?
Até dormindo eu sonho com o Salão do Encontro. Fico pensando em como melhorar o nosso trabalho. Meu grande sonho era ter um Salão do Encontro em cada cidade do Brasil.
 
Ainda viaja muito ou faz pequenos passeios?
Não, isso já chega. Acho que ao longo da minha vida viajei muito. E quanto a passeios, nem pensar!
 
Alguma cultura em especial marcou sua vida? Como foi a viagem para o Quênia, na África?
Foi uma viagem que ganhei do governo da Inglaterra. Chegando lá, vi muita gente chorando e reclamando das dificuldades da vida. Até os franceses reclamavam dos seus problemas. Foi quando, no meio dessas pessoas, me levantei e disse que eu sabia a solução.
Eles, assustados, me perguntaram o que era e eu disse: “Acreditar em vocês mesmos, no valor de suas mãos, e passar isso para as pessoas. Enquanto vocês não puserem a mão na massa e descobrirem que têm potencial de vencer na vida, nada vai dar certo”.
 
Quais são os próximos sonhos?
Trabalhar mais com as pessoas. Hoje acordei decidida a começar esse trabalho com as cozinheiras. Quero mostrar a elas que os afazeres não são uma coisa desagradável. Meu sonho é fazer com que as pessoas trabalhem com excelência.
 
Considera-se uma pessoa feliz?
Plenamente. Aproveitei muito a vida e acredito que cumpri a minha missão muito bem. Tudo o que eu desejei realizar, eu realizei. Hoje tenho de fazer as coisas de acordo com a minha idade. O Salão tem uma grande equipe e quero passar para eles que é possível ser feliz no trabalho

 




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